quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A persistência é doce ou salgada?

- Por aqui Zim, por aqui...

O último comentário da minha dilecta Mana Pagu, no post anterior, vem curiosa e precisamente ao encontro de um tema que cogitava hoje ao lavar a louça - sim, pasmem, também exerço essas actividades dos simples mortais! Podeis perguntar no que se entretinha a minha complexa mente enquanto as mãozinhas dóceis e engenhosas lidavam metodicamente com os artefactos do quotidiano, e eu respondo: pensava eu que a persistência é uma arte. Temos, contudo, que acertar aqui uns detalhes, e isto exige, porque agora me apetece, um parágrafo.

Uma coisa é a persistência cega, surda, seja muda ou matraca. O insistir por insistir, a vaidade da teimosia sem razão nem meta adicional que não a de fincar o pé e abrilhantarmos dessa maneira, na nossa ilusão, uma "personalidade forte", ou "vincada". Não confundir, amistosos leitores, nunca confundir virtude e carácter rijo com o fincar do pé zangado no chão ou com a disputa salobra. Nunca confundir. Mas prossigamos: outra coisa, e já bem diferente, é a persistência adensada num claríssimo auto-esclarecimento sobre o seu fundamento, alicerçada numa motivação salutar de constância num pensamento/plano/acção acalentados, alimentada por uma vontade de produtiva construção de alguma coisa boa para as nossas vidas. Esse será o melhor grau de eficiência, o da plena adesão do nosso pensamento e do nosso sentimento ao que se pretende. Névérdeléçe (ihihih), há sempre um porém. E o porém é que muita coisa nos distrai, cansa e dispersa e é nessas adanças, ou melhor, nessas paranças, que amiúde se dilui a vitamínica persistência. Ainda por cima com a crise, a troika, a roubalheira, a incompetência, as antipatias, e por aí além.

Vamos dar as mãos, inspirar e expirar profunda e tranquilamente, e fazer o seguinte exercício conjunto: imaginem uma pessoa que tenha um talento inato para a arte da, deixem cá ver...culinária. Ah, deliciosa arte esta dita! Pois bem, acrescendo a esse talento natural, a essa espontânea inclinação com excelentes resultados, essa pessoa conhece, ainda, um prazer imenso quando cozinha, recriando ou inventando pratos, doces, salgados, molhos, massas, um sem número de delícias. Para além de ter um talento que lhe fervilha dentro do ser e da sua culinária lhe proporcionar um grande prazer, essa pessoa reflecte recorrentemente sobre técnicas e tácticas da cozinha, faz cálculos, antevê texturas, congemina sabores, pesquisa meticulosamente ingredientes, marcas, inquire os profissionais do ramo sobre as suas opções, troca ideias e experimenta, assim, uma incessante aprendizagem neste vasto e guloso campo. Vamos lá fazer as contas: esta nossa pessoa é talentosíssima, sente um genuíno e renovado prazer no exercício desse talento e, ademais, mostra uma vocação indiscutível para a gastronomia, para o universo gourmet, para seduzir e fazer viajar com as suas indizíveis tentações.

E pergunto: quantas coisas esta pessoa não poderia fazer nessa área? Quantas pessoas não amariam trabalhar com ela, experimentar as suas obras de arte, aprender a desenvolver o seu próprio talento com ela, adicionar cor às suas vidas com as perspectivas que um grande talento partilhado e experimentado (prato), pode sempre permitir? Quantas oportunidades de trabalhos interessantes, eventualmente em lugares diferentes, perto ou distantes, não poderia esta pessoa vir a ter? Que grande sonho não poderia, enfim, concretizar, quem sabe uma constelação deles?

E agora, reconcentremo-nos. E se essa pessoa nada fizer, para além de se divertir pontualmente com um ou outro prato, uma ou outra façanha? Se não sistematizar, calendarizar, escolher formações a fazer, realizando-as efectivamente? Aprender mais fazendo, ampliando o curriculum trabalhando, palmilhando, reescrevendo a sua história particular tão única, especialíssima? Como a de cada um de nós.

Ora, se esses "ses" ocorrerem, então essa tal pessoa, essa tal tão talentosa pessoa, não persistiu na sua verdade, não perseguiu o seu dom, não conheceu, ou não conhecerá, a sintonia de poder viver do que mais gosta de fazer.

Esta pessoa é um exemplo. Há tantas assim, e certamente demasiadas. Talvez dentro de cada indivíduo exista alguma coisa de desistência juntamente com alguma vaga ou veemente vontade.

O desafio que  aqui deixo, nesta posta de hoje, véspera de 11-11-11? Ei-lo: que cada um saiba escalpelizar dentro de si e trazer à tona o seu mais autêntico gosto, a sua vontade, e coloque essa substância de sonho e de concreto querer como um dos luzeiros norteadores do seu caminho. Tenho a certeza de que a demanda disso que estimamos e queremos trará um sabor inédito à sucessão dos nossos dias e uma fruição ainda mais inesquecível do tempo que temos, enquanto o tivermos. Enquanto o comermos, degustando-o.

Por isso, grata aí Pagu - valeu!

3 comentários:

Pagu disse...

Adorei o post, caíu assim como uma luva, que é uma forma de dizer "enfiei a carapuça".

Pois imaginem agora uma mulher que tem um jeito sublime para a escrita, que tem ciência, arte, humor, subtileza, cérebro, para ser um ícone do bem escrever e que por vezes é acometida de uma preguiça mortífera para com tantos dons!!!

Vá, não sejam preguiçosos, imaginem pá, imaginem.

PS1. Quando a Tamborim diz "lavar a loiça" quer dizer "lavar uma colher e uma caneca". Para que conste.

PS2. Quando a Tamborim fala em delícias gastronómicas, socorre-se com certeza de sabores que em tempos usifruíu posto que agora só come palha.

Tamborim Zim disse...

ahahahaahahahah É o gáudio, é a loucura lançada sem retorno, é a rambóia selvática.Eu sabia, eu sabia desse ricochete!;)
Seja uma colher, uma caneca, uma tampinha, é sempre tarefa dolosa.
Continuo uma apaixonada pela arte da boa degustação- isso da palha é falso, falso, falso. O admirável mundo de novos sabores o comprova diariamente. Homessa Pagu!

Pagu disse...

Ora Tamborim, um prato que tem "palha" das mais diversas cores e formatos, é sempre de desconfiar.