sábado, 3 de dezembro de 2011

Uma Aventura em Serralves

Zeca Baleiro - Bienal (Zeca Baleiro/Zé Ramalho)

Este post do jaa, no seu excelente blog O Escafandro (mesmo do camandro!), relembrou-me uma cena que muitas vezes me vem à memória porque sintetiza de forma perfeita, fílmica mesmo, se fosse o caso, a nossa relação com algumas vertentes da arte contemporânea. Senão, vejam só...

Há uns bons anos costumava ir ao meu amado Porto várias vezes. Tenho uma paixão assolapada pela cidade e, se muitas vezes passeei por ela completamente sozinha, noutras ocasiões cedi com muito gosto ao convite de amigos e usufruí da sua companhia em alegre deambulação. A história que a seguir vos conto já tem, por isso, centenas e centenas de dias em cima. O meu querido amigo M. levou-me a conhecer a lindíssima Casa de Chá da Boa Nova, em Matosinhos, um primor do Siza Vieira - as linhas, o encaixe na paisagem, as vistas para os rochedos e para o mar, um êxtase. Entre vários acepipes, mimou-me o meu amigo com o primeiro vinho que eu gostei mesmo na minha vida até então, um soberano Quinta da Bacalhôa que ele, bom conhecedor, quis escolher para o nosso animado almoço. A benfazeja cadência báquica, a degustação da conversa, sempre uma peça de arte a deste meu amigo, o charme da Casa e o insinuante mar lá fora tornaram aquele momento uma delícia inesquecível, e lá saí coradinha e feliz daquele recanto. Passeio para lá passeio para cá, deixou-me o M. em Serralves antes de seguir para o seu trabalho. Foi, portanto, num contexto já de certo júbilo que entrei portas adentro daquela minha dilecta galeria.

Percorria as salas mas não me encontrava particularmente entusiasmada por nada do que via. Na procura por alguma coisa realmente fora de série, dei por mim numa grande sala vazia, por onde maquinalmente me vejo a andar com desconfiada precaução. Um vazio claríssimo enchia tudo, até que descortino, no chão, um copo com água. Não me lembro se olhei para o tecto para aferir de que lado vinha a ameaçadora humidade, mas creio que não (trata-se de mera hipótese para vos impressionar). Passei de fininho ao lado do objecto como se não me sentisse constrangida, e esperando que o funcionário da galeria que por ali estava considerasse o meu andar e a minha postura naturais. Os pacatos passos sala fora conduziram-me perto de uma parede na qual se apoiavam um vidro ou dois, não me recordo com exactidão, e nessa altura devo ter-me convenvido de que a referida sala estava em manutenção, ou que uma exposição ali se montava. Avanço e, quando já na sala seguinte perscrutava por mais novidades, ouço um barulho de vidros a cair da sala de onde viera. Burburinho, vozes, e alguém a exclamar divertidamente: "Olhe, já me aconteceu há bocado!" A reboque do Bacalhôa e da situação, e na sequência da minha indecisa caminhada, começo a juntar as peças e eis-me com uma incontrolável vontade de rir. Não resisto a passar pela mesma sala para sair. Quando o fazia, faceira e provavelmente já mais veloz, veio ter comigo o senhor funcionário. A sua face transparecia uma gravidade aplicada e uma atenção detida mas gentil. Acercou-de de mim, apontou para um espaço em baixo entre nós, e disse-me serenamente: "Reparei que lhe passou esta obra de arte." Eu, cheia de riso, zonza do vinho (ou vice-versa), fiquei por momentos suspensa do olhar hipnótico do homem. Pronta para tudo, embora, olhei para baixo: um quadrado de vidro repousava, quedo e mudo, sobre o chão. Ergui os olhos e encontrei a atenção do meu zeloso guia: "Olhe", respondi, bem-humorada, "devem ter-me passado muitas mais! Sabe eu até gosto de um certo minimalismo, mas isto para mim é um bocadinho demais...". O senhor encolheu elegantemente os ombros, em compreensiva mas compenetrada expressão, e lá me disse os nomes de uns certamente inexpugnáveis artistas, que imediatamente esqueci. Agradeci e saí, com gargalhadas a implodirem por mim adentro, e eu apressadamente a dirigir-me à saída, a rir sem detença. Deveras! O copo de água, os vidros pelo chão, encostados, as pessoas aos pontapés às "obras de arte", tudo aquilo na selecta sala de exposição da metafísica última da contemporaneidade. Que "ingnorância" a nossa, Céus!

E eu ria, ria, ria muito. E abençoo esta história, aquele momento, o M. que me tornou uma exigente apreciadora de vinho, e todas as irrefreáveis risadas que já dei ao recordar e a recontar a minha aventura em Serralves.

Para ilustrar este mimo, só me ocorre uma canção: Bienal. O vídeo que vos deixo tem a letra integral e saibam meus doces, saibam que o concerto do Zeca Baleiro a que assisti e em que ele cantou esta música foi o mais divertido de sempre, fiquei às lágrimas! Não percam - e cuidado, nunca se sabe que masterpiece podem pisar, estilhaçar ou perder se a subtil e artística antena não vos acompanhar. Quem avisa...

2 comentários:

Pagu disse...

Brilhante post, eu pagaria para ter dividido esse momento contigo.

Já fui bafejada em ouvi-lo de viva voz e ri a bom rir com a exposição que por pouco, muito pouco, não passou por mais uma sala em remodelação ou coisa que o valha.

Tenho a certeza que, para quem ler este pos, Serralves nunca mais será o mesmo.

Tamborim Zim disse...

Tb eu queria!
Vamos a Serralves?;)