sábado, 2 de junho de 2012

O fim do Mundo


O bailado de Via Láctea e Andrómeda

Últimas imagens da Terra (dizem que é mais ou menos assim)

Kid Abelha - Pega Vida (Paula Toller/George Israel)


Tudo começou com o comprimido da malária. Meia hora de pé é o que a bula manda depois da toma, pelo que Tamborim Zim interrompeu as suas leituras e lá se levantou, lavou umas pecinhas de louça e, contrariamente ao que é seu habitual, menos ainda de dia, ligou a televisão e viu um pouco das notícias. As amenidades que já trauteamos de cor e salteado sobre a Seleção (força Portugal, claro, bamos lá cambada), foram depois substituídas por um momento de outra elevação e mui superior risco. Andrómeda, a galáxia mais próxima da nossa linda Via Láctea e o nosso sistema solar, aproximam-se a uma velocidade de 480 mil kms uma da outra, se é que percebi bem (nestas imensidões, tudo pode acontecer). Depois de uma aproximação irrefreável, as duas galáxias chocarão e passarão uma entre a outra como fantasmas, segundo leio pelos desmundos internáuticos. Ambas expulsarão muitas das suas estrelas para o espaço vazio, e quando um novo sistema solar se formar, na sequência da união, via gravidade, das duas, as estrelas regressarão, seduzidas pela grave lei. Fala-se já num nome para essa nova galáxia: Lactómeda.

Tamborim Zim, que ouve falar vagamente de ameaças de meteoritos, coisa que nada tem a ver com este caso, fica de olhos esbugalhados. Ouve, incrédula, a voz cordial e super "bem com a vida" da repórter, dizendo que nessa altura, ou seja, daqui a uns 2,5, ou 3 milhões de anos (como vi noutros sítios - ou 5 milhões, como vi noutros para o encontro total entre as duas galáxias), lá se daria a fusão e a civilização humana, uma pequena civilização que um dia por aqui passara, teria desaparecido. E a senhora apresentadora pareceu acatar esta "super-nova" tranquilamente (pimenta no bumbum do outro é refresco, volto a repetir), tanto que foi com um sorriso nos lábios que continuou a sua vida. Aposto que o José Rodrigues dos Santos teria apresentado outro ar, entre a perplexidade histriónica e a imobilidade siderada. Ai, não, siderado vem de sideral, isso aprendi com o Jorge Luis Borges...Affff.

Fico em estado de choque: então mas e os cientistas sabiam disto tudo? (Eles e a torcida do Flamengo, como depois vejo na galáxia Internet, que ao menos não choca mas tudo aglutina, uma vez que esta notícia não é notícia. Só para mim, Tamborim Zim, e outros incautos apanhados de surpresa no início da tarde de sábado. Sabe-se desde o final dos anos 50, mas sem grandes pormenores de consequência.) Então e isto é verdade, verdadinha, não é possibilidade, probabilidade, rumor, fofoca  das estações espaciais, dos Hubbles deste mundo? E a gente desaparece daqui assim, sem deixar rastro, mas naquela não da alta probabilidade mas da certezinha absoluta como dois e dois serem quatro? Que inaudito diacho! Imediatamente me vieram à mente duas urgências dignas de post-it. Uma digo já: temos mesmo de encontrar outra galáxia, outro ou outros planetas para arejar a pevide e migrar a vida humana, que depois noutra qualquer, e mesmo que Saturno ou Titã, como se alvitra, forneçam condições plausíveis para vida, nunca se sabe como é que aí nasceríamos de novo, que isto das origens é sempre para Além de complicado. Por mim, amava poder circular livremente entre planetas, tipo: "Não posso ir para o Algarve nas próximas férias, nem a Paris, porque vou a Saturno ou a Marte".

Bom, mas sem dispersão... Nestas coisas, como de resto em todas, ele há vários pontos de vista e opinanços a ter em conta. Então, segundo alguns, nem tudo estaria perdido: há muuuuito espaço entre as 100.000.000 de estrelas envolvidas, pelo que Andrómeda e a Via Láctea poderiam dançar (dança é termo muitas vezes usado para este encontro) sem que a Terra se despedaçasse. Talvez fosse melhor que saísse do sistema para não apanhar com uma supernova em cima mas, meus caros, ninguém sabe ao certo. Pensa uma pessoa que, enfim, por uma daquelas magnânimas composições da sorte, até a Terrinha poderia escapar, quando outros conhecimentos assomam às retinas imocentes de Zim: quê lá isso, não se preocupem porque o o Sol, sim, o solinho, o bom do Astro Rei acabará com a Terra antes do choque o fazer, uma vez que o hiper-bichano estelar conhecerá uma imensa expansão em que poderá mesmo consumir planetas como Mercúrio, e todo o movimento despoletado nos universos ou pluriversos ou o que quer que nos rodeie, sãos amigos, fará com que caiamos inapelavelmente nessa gigantesca ratoeira incandescente do Sol. Vejam, vejam a previsão do nosso fim próximo, acima, vejam se duvidam. De novo, sigo o título do Lobo Antunes e pergunto: que fazer quando tudo arde? Snif. Isto simplesmente não está certo. O que vale é que deve ser improvável que algum cientista ponha as mãos no fogo em que tudo sucederá assim - ou assado? (Assado também não é expressão conveniente ou de bom augúrio neste contexto...)

A outra urgência que me ocorreu foi a seguinte: temos de enviar cópias, disquetes, pens, CDs, DVDs, dossiers, o que seja das nossas grandes produções artísticas para outros planetas, para outros sistemas solares, para todo o lado. Para a Lua, para todas as ruas da Lua! Como perder-se Os Maias? Como esquecer-se o tesouro da música de Jobim? Como é que as telas do Monet e do Dalí se evaporarão da realidade e da memória? E o que é pior, a perda da realidade ou da memória?

Mas o que mais me aperta, e sempre apertará, é pensar na perda do ser humano e dos seus monumentais sorrisos, dos lindos sentimentos que pode conhecer e transmitir, dos divertimentos de viagens, do deslumbramento de que somos capazes, da ideação que nos faz navegar muito mais longe que todas as supernovas para qualquer destino que estas possam conhecer. E como será o mundo sem leões, sem pássaros, sem o azul, sem o mar, o mar de banhar, como tudo, sem sonho? O que é que conta, no fundo e ao cimo? "O que é que e bom?", verso da canção que numa noite de Verão, há tantos anos, me soprava em sonho? Como encarar o desaparecimento do amor? Que estranho ter saudades de nós, saudades nossas, ainda que "nós" não sejamos fisicamente nós, mas antropologicamente nós. Sinto-me irmã da humanidade nesse golpe que a longínqua antecipação desfere, e a um tempo parece que mais essa confirmação da efemeridade nos adensa e nos expande como o Sol se expandirá. Promessa, talvez.  E quando tudo arde...que fazer?

Também me veio à cabeça a canção dos Kid Abelha que podem escutar acima. Aproveitem e escutem, amem, pensem e experimentem no melhor nível esta viagem que nos saiu e cujo fim não poderemos (felizmente), prever. Como diz a minha querida amiga G., o ideal seria vermos cada dia não com o pensamento de "como se fosse o último", mas "como se fosse o primeiro". O primeiro dia de férias, acrescentaria.

2 comentários:

Tétisq disse...

Cá está! (em português)
Eu não sabia que a Andrómeda e a Via Láctea se estavam a aproximar...agora, quem ficou preocupada fui eu :)

Este texto está fantástico! Adoro!

É mais ou menos como diz a música "as ideias muito simples são difíceis de entender". As coisas simples da vida, tidas como adquiridas e intrínsecas são difíceis de teorizar e quando nos pomos a pensar nelas a sua (ou nossa) impossibilidade de compreensão racional deixa-nos assustados, pelo menos eu fico assustada...

Tamborim Zim disse...

Oh, muito obrigada Tétisq! Eu tb fiquei preocupadíssima e angustiada. Sim, isto n pode deixar de assustar-nos, ainda q à distância...