domingo, 5 de agosto de 2012

Leitura de hoje

Clepsydra - Camilo Pessanha
(Foto de Zim)

Ler poesia é esticar e tanger as cordas sensíveis da existência. A sintonia que é dada através das eras é a do encontro do nosso olhar e sentimento com os signos inscritos pelo poeta num momento dado, num sentido seu, que pode ou não ser redescoberto pelo leitor que voga.

Ler um poema é apanhar um avião.

Aqui deixo um pouco do melhor da poesia, via Camilo Pessanha. Este livro foi editado pela primeira vez em 1920 pela dama amada (sem correspondência...) por Pessanha, Ana de Castro Osório, estando o poeta na longíngua Macau. Magnificente pintura, para além do mais. Imagino este poema numa daquelas telas ocres enormes de Gustave Guillaumet. Ora vejam:


Branco e Vermelho


A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.

Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso…
Que delícia sem fim!

Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distância reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)

Na areia imensa e plana,
Ao longe, a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte,
Da enorme dor humana…
Da insigne dor humana…
A inútil dor humana!
Marcha curvada a fronte.

Até ao chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.

A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Pavidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.

Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror…
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei- los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor…

E ali fiquem serenos,
De costas e serenos...
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas.
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas!

A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.

Ó Morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa…
Tudo vermelho em flor...

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