segunda-feira, 19 de maio de 2014

Ulisses

 
 

Foto de Zim
 
 
Começo por admitir as minhas falhas quanto à literatura clássica: não li a Odisseia na qual Homero, ou outro(s) por ele, narra as aventuras de Ulisses.  Ilíada sim, foi escrupulosamente lida até ao seu término. A duras penas, mas nos meus 18 anos que sabia eu de leituras realmente difíceis.
 
Do que eu me recordo, tive três grandes intentonas literárias, no sentido de terem representado um esforço hercúleo (seguindo na matriz clássica) para prosseguir e concluir a sua leitura: Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, Ontem não te vi em Babilónia, de António Lobo Antunes, e Ulisses, de James Joyce. Dos três,  a minha preferência vai integralmente para o primeiro, apesar da estrondosa dificuldade que  coloquialidade sertaneja da narração impõe - um peso pesado, mas uma maravilha. O livro que refiro de Lobo Antunes foi o único seu que li, a justaposição permanente de episódios, discursos, reminiscências, fizeram desta uma experiência de leitura interessante e intrincada, mas muito incompleta e baralhada. À última obra citada (com o peso de mil construções graníticas!) acabei-a ontem.
 
Comecei a ler Ulisses (que comprei por impulso ao ver a bonita edição da Relógio D' Água, lançada em Novembro último) nos últimos dias de 2014. Das poucas vezes que lhe peguei desde o início do ano dei-lhe uns bons avanços. Não interrompi com outra leitura: o sacrifício impôs-me uma fidelidade pragmática. Este foi, sem dúvida, o livro mais difícil de ler, para mim, até hoje. As razões são várias, e dada a natureza da sua escrita, aliás, das suas escritas, até a sua dimensão, umas potentes 730 páginas, dá uma ajuda para exaurir o leitor. Mil saravás ao tradutor, Jorge Vaz de Carvalho, porque deve ter sido absolutamente exasperante, talvez tanto quanto fascinante, traduzir o inglês, o inglês-onomatopeico, o inglês-doidivanas e o inglês inventado de Joyce. Joyce parece, com efeito, pretender enlouquecer-nos, levar-nos por um labirinto de horrores, de truques filológico, de detalhes sordidamente despropositados, deslocados, mas que de ínfimos e presentes findam por autenticar o mundo que descreve, ou melhor,  narração em que nos arrasta, de uma forma muito peculiar. Hoje percebo bem a importância do livro, a razão de ser uma referência, e para muitos o instaurador do romance moderno: não creio, de facto, que o arrojo, que as diabólicas tropelias de Joyce tenham lugar em muitas obras editadas. O fôlego, a perdição e a obstinação, quase irracional, da sua porfiada demanda de cenários. O autor demorou sete anos a finalizar Ulisses (1914-21) mas a história passa-se num único dia, em Dublin. Não há um grande enredo, como de resto costuma suceder nas minhas histórias preferidas. Há três personagens que se destacam, na proa Leopold Bloom, e contam-se encontros, conversas filosóficas, conversas ébrias, desconexas, mutações de seres que julgamos oníricas (mas, naquele contexto, naquele texto, ao sabor daquela pena doida, por que não reais??), uma jornada atribulada entre dois homens de diferentes gerações, as fugas de si de Bloom, talvez sobretudo para trás, os seus ideais e as suas peias, e a figura velada de Molly Bloom, apenas cruamente autorrevelada no final da história. Ao longo de diversos capítulos com estilos literários muito diferentes, está presente uma relação com a Irlanda, uma espécie de convocação da gesta antiga, esta, e uma certa vontade de emulação épica da Inglaterra. Uma obsessão de menção religiosa  malcriada de Joyce, provocadora, execrável também, na boca de alguns personagens (o que, entre outros detalhezinhos do livro, lhe valeram uma adicional Odisseia quando se tratou da sua publicação, com tribunais ao barulho, o costume), a loucura alienada, a sexualidade latente e, por vezes, fremente das figuras que desfilam ao som da dissonante sinfonia do autor. Uma pequena peripécia, cheia de enormes pequenas histórias. Dizem os críticos que  organização da obra pretender representar, no seu estilo, as diferentes fases da Odisseia. Disso, como vos disse, não posso falar. Mas posso dizer-vos que achei logo que a Beat Generation, da qual sou uma fã entusiasta, tiveram de ter tido uma inspiração Joyciana tempestuosa, e fiquei contente por ver que um dos críticos literários, quando do lançamento de Ulisses, afirmou que depois de Whitman não lera nada assim. Sabe-se da referência de Whitman nos beats...
 
Não foi, e duvido que alguma vez se torne um dos mus livros preferidos. Duvido, mesmo, que o queira reler. Talvez, daqui a vários anos,  como exercício literário-cerebral-ginasticante. Até porque o desentendo, mais do que entendo. Para mim a forma é essencial no romance, e na maior parte das vezes a forma de Ulisses desagrada-me. Há, no entanto, rasgões geniais, percebendo-se que o autor dominava com absoluta excelência a arte da escrita refinada, elevada, que sai numa correria poética desenfreada e que nos deixa, naqueles momentos, encantados. Mas não era essa a maneira que entendeu contar-nos toda esta história. Ulisses é um pugilato literário, uma luta estrénua para ser escrito e para ser lido, e se Bloom sua as estopinhas quem somos nós, leitores audazes, para não passar pelo mesmo?
 
Deixo alguns excertos abaixo. Aventurem-se, quando vos apetecer. Respirem fundo, e força.


"Rapazes, é agora. São 12 e 25 hora de Deus. Digam à vossa Mãe que vocês lá estarão. Despachem-se com o vosso pedido e jogareis o ás de trunfo. Alistai-vos aqui mesmo! Reservai bilhete para a eternidade, trajeto sem paragens. Só uma palavra mais. Sois deuses ou uma cambada de imbecis? Se o segundo advento chegar a Coney Island estamos preparados? Florry Cristo, Stephen Cristo, Zoe Cristo, Bloom Cr...isto, Kitty Cristo, Lynch Cristo, depende de vós sentir essa força cósmica. Estamos com miúfa do cosmos? Não. Fiquem do lado dos anjos. Sejam um prisma. Vocês têm aquela coisa dentro de vós, o eu superior. Podem ombrear com um Jesus, um Gautama, um Ingersoll. Vocês estão todos nesta vibração? Eu digo que estão. Uma vez que saquem isso, congregação, uma passeata até ao céu torna-se algo trivial. Entendeis-me? É um abrilhantador de vida, asseguro-vos. O que de mais excitante já existiu. É uma torta inteira com doce dentro. É simplesmente a linha de saída mais catita e animada. É imensa, supersumptuoso. Restaura. Vibra. Eu sei e sou uma espécie de vibrador."
 
 "Você morre pelo seu país, digamos. (...) Não que eu lhe deseje isso. Mas eu digo: o meu país que morra por mim. Até ao presente foi isso que ele fez. Eu não quero que ele morra. Que se dane a morte. longa vida à vida!"
 

" - Não podemos mudar o país. Vamos mudar de assunto."
 
 "Porque havia uma frustração recorrente de o deprimir mais?
Porque no ponto crítico decisivo da existência humana ele desejava corrigir muitas condições sociais, o produto da desigualdade e da avareza e da animosidade internacional."
 

" Que afinidades lhe pareciam existir entre a lua e a mulher?
A sua antiguidade em preceder e sobreviver a sucessivas gerações telúricas: a sua predominância noctuna: a sua dependência satelítica: o seu reflexo luminar: a sua constância durante todas as suas fases, erguendo-se e pondo-se às suas horas marcadas, crescendo e minguando: a invariabilidade forçada do seu aspecto: a sua resposta indeterminada à interrogação não afirmativa: a sua potência sobre águas efluentes e refluentes: o seu poder de enamorar, de mortificar, de conferir beleza, de enlouquecer, de incitar e auxiliar a delinquência: a tranquila inescrutabilidade do seu rosto: a terribilidade da sua isolada dominante implacável resplandecente propinquidade: os seus presságios de tempestade e de calmaria: o estímulo da sua luz., do seu movimento e da sua presença: a admonição das suas crateras, dos seus mares áridos, do seu silêncio: o seu esplendor, quando visível: a sua atracção, quando invisível."
 
"(...) oh e o mar o mar carmim por vezes como fogo e os esplêndidos poentes e as figueiras nos jardins de rosas e os jasmins e os gerânios e os cactos e Gibraltar quando eu era rapariga onde eu fui uma Flor da montanha (...) e depois eu pedi-lhe com os olhos para pedir de novo sim e depois ele pediu-me se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha (...)."


2 comentários:

Esdras disse...

Eis um livro que sempre me causou medo. Tentei uma vez, não consegui. Há livros geniais que nunca li por preguiça ou pela facilidade da releitura de outros geniais também. Grande sertão: veredas eu li sem problemas e reli mais de uma vez. É muito próxima a linguagem do livro e o ritmo das falas, da maneira como se fala no sertão nordestino. Rosa parece um cantador de repente de qualquer interior de Pernambuco. Mesmo uma pessoa desprovida de conhecimento formal da língua, como eu, percebe uma criação de linguagem, um mundo fabuloso onde as palavras são as razões últimas das coisas e as coisas só servem em existir para que sejam expressas em palavras.
Desculpe a maluquice de misturar tudo mas sempre faço isso.

Tamborim Zim disse...

É mesmo isso, o ritmo e a inventiva, inesquecíveis e monumentais. O Ulisses exigiu-me uma estrénua resistência, foi muito difícil de ler mas é uma experiência literária e cénica, por assim dizer, q é muito recomendável. No entanto, está muito longe de ser um dos meus livros preferidos. Maluquice? Amo!!! :)