quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Baralhar, voltar a dar - e provavelmente a perder

Se a malta não fosse tão assintomática, tão doida, tão nonchalant, se a Terra não rodasse tão ordeiramente porém à beira do céu da boca da ninfomaníaca Andrómeda, bolas, se eu visse, mais do que os penso, rododendros numa eterna flor. Se não existisse a Sida nem a gonorreia nem a guerra nem a fealdade da aorta, caros, se o barato fosse exclusivo do masculino, gentil embora, da barata, se o meu peito não batucasse morbidamente neste último dia do ano. Se eu percebesse este meu último ano, se compreendesse para além do sabor de rosquinhas doces, se aquele e-mail tem chegado, se da bainha do vestido saíssem segredos para a cura de todas as depressões e de todos os transtornos e desconexões de todos os transtornados. Se eu não tivesse visto aquela transformação, se pudesse viver dentro de uma tarde de Verão numa aventura d'Os Cinco. Se o mundo não perorasse, não blasfemasse, não fundeasse a cada tentativa de criação de um poema translúcido. Se os navios realmente fizessem desatracar de portos as almas embrumadas que os habitam sem lenços brancos e sem horizontes para além da linha quente-fria provocante do mar. Se calasses as tuas palavras. Se aqueles passos fossem erráticos e não o traçado talhante de um fim. Se a minha memória não me deglutisse, gorda e dantesca, se a minha veia não se abrisse.
 
Podia ser um grande ano, este novo.

domingo, 6 de dezembro de 2015

No alvo, senhores

Aos filhos da puta dos terroristas covardes que andam pelo mundo a matar e ferir gravemente inocentes enquanto guincham alarvemente "Isto é pela Síria!", acrescendo desconhecerem totalmente as afinidades políticas, filosóficas, concetuais das suas vítimas - e não refiro de propósito o fator religião porque estes merdas não são religiosos nem fazem a mínima ideia do que significa religiosidade, qualquer que seja -, tenho um mote para oferecer:
 
Mais bombas, muito mais bombas até vos desfazermos seus canalhas, e isto é pelas vítimas de todos os continentes que vocês dilaceraram e tentam amedrontar. Morram seus demónios, o mais devagar possível para que sofram bastante, e nunca será o suficiente.
 
Para os apanhados na criminalidade terrorista fora do território sírio, espero que a tortura e depois a eliminação não se façam esperar, até porque informações sobre redes e fulanos a esmo são imperiosas.
 
Anonymous, do the work as well!

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

domingo, 22 de novembro de 2015

Cavaco Silva

É só para dizer que eu gosto muito do Cavaco Silva, nosso eterno Presidente da República. Leram bem e, não, não é ironia.

Discordo de várias posições que tomou, pontuando o voto contra a libertação de Mandela por recear violência militar sobre os portugueses a residir na África do Sul. Algumas declarações foram infelizes -sim.

Mas explico sucintamente por que é que sou admiradora do Cavaco sem ser PSD (nem PS, já agora, nem filiada em partido algum), nem de direita nem do centro nem da esquerda, mas de cima:

- Gosto dele porque não me esqueço, tinha eu uns 15 anos, da sagacidade e da paixão que representou, numa entrevista, quanto à nossa entrada na então CEE;

- Gosto dele porque para mim é o símbolo da reflexão, da coerência interna (concorde-se ou não com os fundamentos da mesma), da discrição e da força de um Grande Estadista.

- Gosto dele porque sei que preza veementemente a estabilidade da Nação, fazendo o que pode, e em condições extraordinariamente difíceis (vejam-se os últimos executivos), para que se mantenha.

- Gosto dele porque o considero meu Presidente.

- Gosto dele porque tem um espírito poético e porque se emociona com o sorriso das vacas.

- Gosto dele porque responde a todos os tipos de carisma de que Max Weber se poderia lembrar.

- Gosto dele porque sei que, sejam quais forem as decisões que tomar, e ainda que não lhe agradem, e muito menos a mim e à torcida do Flamengo, o fará com detido cuidado e aturada reflexão e preocupação.

- Gosto dele porque o considero o melhor Presidente da República e Primeiro Ministro que Portugal jamais teve.

- Gosto dele, somando-se às razões, porque a subjetividade emocional e afetiva que nos faz gostar de alguém não se esgota, felizmente, em argumentos lógicos.

É por todo o exposto e, essencialmente, pela ideia firme de que, como canta a minha amada Lauryn Hill, o respeito é o mesmo o mínimo, que acho de excruciante mau gosto o chorrilho de ofensas que navegam histericamente na net e dos media, até... políticos que se deveriam dar ao respeito. Que tal oposição civilizada ao PR, camaradas? A sério que não sabem fazer melhor?

Podiam começar a pensar em alternativas para as próximas presidenciais que não nos fizessem rir muito e desbragadamente.

Salve Aníbal Cavaco Silva.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Credencial



Hoje andava na rua ao fim da tarde

Naquela hora

Que podia ser aquela Hora

Em que tudo é ainda possível

Na vida

E pensei que amo

O silêncio sepulcral

A escuridão de corredores compridos

A insonorização do desconforto

O meu roupão Outambo-Inverno é silencioso

Aquele princípio de noite debaixo da ponte

Foi também silêncio, no início e no fim

Como será o silêncio dos que se perdem da vida,

Dos humildes que já não conseguem mais,

Que não conseguem tentar conseguir?

Deve ser muito comovente, como um silêncio de órfãos

De pombas abandonados, de gatinhos afogados no rio de Couros

Somos tão incrivelmente pequenos

Tão inexoravelmente crianças

Amo o silêncio

Sepulcral

Se for uma, turva embora,

Mas clarividente

Antevisão da minha morte

Menos mal

 

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Para não dizerem que só descarrego fúria e fel, camaradas

                                               Leo fressato - Enquanto eu não (Leo Fressato)

 
 
Ando vociferante e a pedir ataques no FB, ia deixar esta linda song para (re)temperar, quando me desparo com o seu clip, very charming indeed.
 
 
O talento de Leo Fressato não tem delongas.

domingo, 15 de novembro de 2015

Amada

                                Catherine Deneuve e Malcom McLaren cantam Paris, Paris


Pensei não pôr nada aqui sobre esta tragédia parisiense, que é humana e, por isso, universal. Como as outras todas, bem sei. O problema é que não conhecemos todos os lugares do mundo, infelizmente, nem os amamos por igual.
 
Muito pouco a dizer, tudo a fazer. Esmague-se bélica e impiedosamente o pretenso EI, já. Ah. só breve nota: estes canalhas não são muçulmanos, se tiverem alguma religião é o satanismo. Não se é o que se diz ser.
 
Cidade amada de luz, as tuas gentes e o mundo não tomado pelas trevas querem viver.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Declaração de amores

Cícero e Silva


Phill Veras




Já sabem que amo o Brasil como se fosse o meu outro país, é a Nação com a qual mais tenho afinidade com Portugal, e sabem ainda mais que, para mim, a Música Popular Brasileira é uma das coisas mais belas e importantes: artisticamente, esteticamente, espiritualmente, existencialmente, adoidadamente.

Posto o introito com advérbio de modo inexistente, cabe elucidar que, dentre as novas gerações musicais brasileiras, há três meninos que destaco pelo seu infinito talento, pela sua perturbadora criatividade, por serem um orgulho para qualquer cultor da beleza e do que inunda de uma forma inominável (amor?). Esperem só um pouco mais.

Não me subscrevendo reacionária, sou das que defendem com absoluta certeza ser impossível ultrapassar génios como Tom Jobim, Caetano, Djavan, Gilbertos, Chico, Caymmis, Milton, etc.. Mas a música flui, e no Brasil há a arte de beber o passado, brincar com o presente e dar-nos sínteses perfeitas onde a indefetível elegância pisca rasgadamente o olho à provocação. São outras genialidades de diferentes génios.

Não me alongo (mais). São estes três príncipes compositores e cantores, por ordem etária, o arquiteto fenomenal de ambiências azuis melancólicas como fadas, com laivos de eternidade, Cícero de seu nome, 29 anos, natural do Rio de Janeiro; o marítimo sonar solar com batidas de dilatações cardíacas transplanetárias, Silva, 27 anos, do Espírito Santo; o mago do momento êxtase e embrilunado de poesia do encantamento, Phill Veras, 23 anos, do Maranhão.

Podem e devem pesquisar os discos inteiros dos três, mas deixo uma song de cada um.

Eles nunca saberão a imensa companhia que já me fizeram, por vezes em momentos a raiar o desespero. Nunca suspeitarão do prazer que me deram, e dão, nem do sopro de vida que trazem. Gratidão é pouco, amados.

Saravá, fabulosos.


 
Silva canta Capuba

Cícero canta Frevo Por Acaso

Phill Veras canta Vício



quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Sírius






Sírius, amigo amado
 
As palavras fraquejam sempre quando mais seriam precisas. Como as ações, tantas vezes. Talvez demasiadas vezes contrastemos a importância de palavra e ação. Mas esta mensagem não é sobre isso, pelo menos na sua essência.
 
Hoje tenho a certeza que recebi uma das piores notícias da minha vida. Deixou-nos o Sírius, o cão amigo, amado, fiel companheiro do meu irmão e da minha cunhada, e também nosso amigo, amado e companheiro, nós que somos também, ou éramos, a sua família. O Sírius já tinha Leishmaniose canina quando foi adotado, e disseram aos seus futuros companheiros que tanto poderia viver por mais um mês, ou um ano, indeterminadamente. Viveu cinco. Cinco anos felizes com espaço, amigos, família, mudança de casa para o esplendoroso Gerês, onde foi mimado e cercado de atenções por fãs de todo o mundo.
 
Ele bem mereceu o que teve nesse período da sua vida, porque deu muito mais. O Sírius foi o cão que mais gostei na vida, e era um dos três animais que eu mais gostava, com a minha Paloma e a sobrinha Sombra, duas gatas marotas e que me desmancham de paixão. Como o Sírius, exatamente, fazia. Haviam-me contado da sua personalidade única, de uma afabilidade e disciplina perfeitas, de um sacrifício altruísta e comovente para agradar, em detrimento do seu próprio conforto. Dos seus abraços com a sua carinha encostada a nós, da força desse afeto físico que abundava nos olhos e em cada milímetro do seu ser, da alegria com que nos presenteava no encontro.
 
Quando o conheci, há cerca de dois anos e cinco meses (parece que foi toda a vida, como tudo é tão estranho!), confirmei e ampliei tudo isso na minha relação com ele. No dia em que o conheci, deitei-me logo com ele no chão, e desde aí somaram-se os mil abraços e beijinhos, foi amor e paixão ao primeiríssimo olhar, porque ele tinha a bondade, o talento, o carisma e a natural disposição de um Príncipe para se fazer amar e admirar. Nunca um animal mais gentil, mais paciente, mais gracioso, mais incansavelmente defensor dos mais fracos, fossem animais ou humanos. O Sírius estava sempre junto a quem pudesse precisar da sua presença imperial e dócil, do seu porte impressionante e da sua passada leve e fiel, do seu olhar a derramar oceanos de ternura e de mensagens indizíveis e maravilhosas.
 
És a mais brilhante das estrelas, Sírius, como a que leva o teu nome. Eu sei bem que, se pudesses, arrastarias este mundo e o outro para ressuscitar e voltar para os nossos braços, para a tua casa, para os teus passeios e para pedires guloseimas a este mundo e o outro também, para nos protegeres de tudo. Sei que moverias montanhas com a tua força e com o teu poder, com a tua serena graça, com a tua lealdade sem defeito.
 
Gostava de te ter podido dar o meu abraço nas tuas piores horas, Sírius. Gostava de te dar eternidades aqui. Amaria ter passado mais tempo contigo, e só posso agradecer-te, meu amor, toda a tua perfeição e a tua grandeza. Quisera um dia ser recordada com um mínimo do que tu serás, sempre, por nós. Amo-te muito, e para sempre.
 
 


segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Reprovação


 

Reprovada


Chega-se a conclusões

Todos têm teorias

Familiares, genéricas, transgénicas, psiquiátricas, psicológicas, podológicas, fodológicas

O Diabo

Tudo para, ao fim e ao cabo

Sempre da tormenta, jamais da boa esperança

A verdade bater com as mil raivas ressentidas da maré na rocha em pedaços milenares

Eu não sei ser

Não sei ser

Simplesmente

Dificilmente

Não sei ser

Foi coisa que  nunca aprendi, como às matemáticas

Inculpe, é burrice

Por isso sofro

Por isso como

Por isso não corro

Portanto  morro

Mais depressa que o minuto, que o romper da chuva

Que o piscar do olho da Sombra

Esta mescla, esta incerta

Merda

Nunca teve, nem terá

Qualquer manual

Mesmo os teus olhos, que passaram

Não o eram

Nem os abraços se interpretavam

Não há guia

Para ao cegos do coração

E do juízo

Que me importa o que seja,

O que voe

Sondar o que se deseja

Analisar circuitos equivocados de uma vida?

A dor é uma via láctea de mágoa

E a alegria, uma ilha

Eu não

Sei ser

E mais, amigos

Queridos

Não posso escrever

Nem fazer

Porque tudo o que eu posso

Porque tudo o que eu sei

É não saber

Ser

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Da delicadeza tão essencial na política

A falar é que a gente se entende, Pá(f)!

 
Eh pá mas não se entendem o quê pá! É à biqueirada tomar a AR, é coordenar, é legiferar, é sacar apoio aos compadres "euroeufóricos" como diz o meu querido colega J. !
 
É tirar o páf e o puf, dar puxão ao tapete, que a onda é de guinada. É guinar, qual não sei quê das eleições, e do voto do povo. O povo também não escolheu o PP, nem o PP para vice-primeiro (que fantástica figura de estilo!), e aguentou.
 
É desarredar e ir para a frente e ouvir o Varoufakis, que bem fala mas, como simplesmente tem garbo e inteligência e não amocha, lá saiu das negociações e de um governo que tanto dele precisaria.
 
Yanis, se quiseres, aqui em Guimarães, etc.... O berço da Nação e tal...
 
 
 
Para os leitores que não saberão, estou a viver em Guimarães desde maio.

domingo, 4 de outubro de 2015

Pafffffffffffffffffffffffffff - Bafffffffffffffffffff

SOS


Caro Povinho,

Alegra-me saber que a Vossa vida vai de vento em popa, e que a estabilidade vos apraz. A sério, é reconfortante saber que há vidas felizes e a quem o atual estado de saque não molesta.

Compreenderão, porém, que para muitos Portugueses, onde me incluo, que estão a ser roubados e desrespeitados diariamente, e com a soberania nacional empenhada à Banca, este dia seja de esfrangalhar os nervos.

Considero tornar-me mais uma Portuguesa pelo Mundo, já que esta preferência pela desgraça me desarranja.

Obviamente, vomito.

Alegoria regressa...no Dia Mundial dos Animais - e as entrevistas que tais


Mais um dia Mundial do Animal, 4 de Outubro de 2015!...
…e mais entrevistas do imaginário que espelham fielmente o mundo real. Ora vejam!
 
Resolvi sair outra vez pela rua e inquirir as pessoas sobre os animais: direitos, ser, consciência, etc.. As extraordinárias perguntas e mirabolantes respostas, mescladas de pinceladas um pouco bolorentas de “senso comum” seguem abaixo para vosso deleite, para vossa esquizofrenia e, quem sabe, para um repensar. Em inglês…think again.
 
O tecnicista
Tamborim Zim – Bom dia, pode responder-me a uma simples pergunta como esta: acredita na consciência animal?
O tecnicista – Quê, hum… Ah, consciência animal. Ná, não. O pensamento é exclusivo da raça humana.
TZB-bom, o pensamento tal como somos capazes de o…pensar. Mas referia-me à consciência, sabe que um Manifesto da comunidade científica, assinado em Cambridge, 2012, por neurocientistas, neurofisiologistas, etc., concluiu que os animais têm consciência e a expressam, em muitos casos de forma muito semelhante à dos humanos?
O tecnicista – Não vi esse programa, mas o ser humano é que é racional, é isso que nos distingue dos animais.
TZ – Hum… E que me diz ao consumo massivo dos animais para servirem de alimentação?
O tecnicista – Ora nem pode ser de outro modo, se não onde é que a gente os punha? É que o planeta já tem gente e bichos que cheguem. Aliás, se não os comêssemos, muitos deles já nem existiam.
TZ – Sucede então, digamos, um pequeno favor dos humanos aos animais, ao comê-los?
O tecnicista – Ai pode crer, pode crer. Veja as pradarias, veja a terra e mais terra que serve para pastorícia. Não fôramos nós, nem existiam.
TZ – Mas não julga que é a produção intencional e massificadora de animais para comer que resulta nessa sobreexploração de terra, e na existência de um número não natural mas exatamente fabricado dos animais?
O tecnicista – Pois, mas tem de ser, é a cadeia alimentar. De outra forma nem existiam, assim sempre vão pastando.
 
O toureiro
TZ – Salut, bom dia, vinha tirar-lhe um minutinho para lhe perguntar o que acha sobre os direitos dos animais.
O toureiro – Ai, por Deus, por Deus, vocês são muito chatos com isso pá.
TZ – Ora, mas como assim?
O toureiro – Acho muito bem que lutem pelos direitos dos animais, pá, eu próprio tive uma cadelinha que era um mimo,  Lizinha, por 15 anos! 15 anos, veja bem, nunca lhe faltou nada e ia ao veterinário e tudo! Mas agora contra o toiro! Contra o toiro eu não admito! Baf!
TZ – É preciso apaziguar, é preciso apaziguar um pedaço. Não somos contra o touro, mas pró-touro. É por isso que somos contra as touradas! Tourada é coisa que se faz com touro, correto, não é sinónimo do boi.
O toureiro – Olhe minha senhora, eu não estou aqui para ser ofendido. Haja respeito! Do boi?! Vocês dos animais são mesmo muito ignorantes e duros de entendimento, para além de republicanos. Não é boi, é toiro! E saiba, minha senhora, que se o toiro existe o deve a nós, aos aficionados, aos apaixonados pelo toiro, que é força de caráter, nobreza e galhardia! Vocês nunca compreenderão os meândricos corredores da mente do toiro, do seu olhar, da sua ancestralidade!
TZ –  Mas compreendemos perfeitamente aquela parte do touro que sangra, em chaga, quando é espetado pelas vossas bandarilhas lúdicas mas que rasgam. E os seus olhos choram, isso também é percetível sob mirada atenta. Além disso, vocês bem sabem que os maus tratos da tourada não se esgotam na arena: antes, durante e depois. Drogas, anestesias, horas e horas em dores e febre antes de morrerem! Não lhe parece indigno tal tratamento?
O toureiro – Minha senhora, informe-se! Vá à Torre do Tombo pesquisar os vetustos incunábulos do saber, onde está sacramentado que o toiro é adulado, em êxtase, antes, durante e depois! É todo um ritual magistral de sacrifício e de demonstração de coragem que escapa às vossas simplórias vistas. Defendam mas é o gatinho e o periquito e deixem o toiro a quem o trabalha…cof, a quem o merece!
TZ – Porém, poderíamos atrever-nos a contrariar que coragem seria estarem a sós com o touro, com iguais instrumentos. E ainda assim não seria coragem mas apenas puro ataque, não lhe parece? Quem provoca quem, afinal? E na arena tudo o que não se vislumbra é igualdade de forças…
O toureiro – Ah pois não se vislumbra porque há é muita desigualdade, o toiro é uma besta de força, rebenta com tudo se não for devidamente tenteado, toureado, dominado, o toiro é um mundo!
TZ – B-bem…muito viçoso não há de estar com o tratamento a que é sujeito antes, durante e depois… Mas diga-me, em relação à questão do direito, ou da ética mesmo. Não compliquemos, do direito, vá: acha que temos o direito de nos divertir com o sofrimento animal em praça pública – ou privada?
O toureiro – Mas minha senhora, qual sofrimento?! É que vocês agarram-se a esses mitos urbanos e não despegam! O toiro gosta, o toiro ADORA aqueles momentos solenes, em que invoca toda a força dos seus antepassados para fazer o que sabe fazer: estraçalhar o seu oponente, se o deixarem. O toiro ama a toirada, ponham isso na cabeça, por Deus!
TZ – Mas o touro não quer atacar, ele é exposto a um hórrido jogo de provocação visual e física para que ataque, e de forma lúdica, para gáudio da assistência e dos intervenientes humanos.
O toureiro – Oh, céus, o que tenho de ouvir. Gáudio, minha senhora?! Que Deus lhe perdoe. Sabe quantos toureiros já perderam a vida durante a sua missão, ou ficaram incapacitados? De missão, de sacrifício se trata, é espinhoso, mas é tudo minha senhora, é tudo, é o sangue a escorrer, a rebrilhar, o animal a arfar, a bandarilha a dançarinar, a pega, o aplauso, a lágrima. Gáudio! Missão, minha senhora, missão!
 
 
A desconectada
TZ – Boa tarde! Será que pode dar-me aqui uma resposta rápida? A pergunta é: os animais têm direitos?
A desconectada – Boa tarde. Sim, já têm, não é? Acho que li ou vi numa reportagem ou assim…
TZ – Estilo decreto?
A desconectada – Não quero mentir mas parece-me que sim, que se decretou qualquer coisa, que têm direitos, ou que não são coisas, ou que também pensam, uma coisa deste género.
TZ – Nesse caso, e como hoje se comemora o dia mundial do Animal, o que é que acha de continuarmos a utilizá-los como se coisas fossem para comida, bebida, roupas, sofás, sapatos?...
A desconectada – Ai é o dia, hoje? Desconhecia! Mas usados para sapatos não, agora não é tudo sintético?
TZ – Não mesmo.
A desconectada – Ah….Olhe não sabia.
TZ – E assim para comida, bebida…
A desconectada – Para isso ainda não se pode dar alternativa, é preciso muito mais soja.
TZ – Mais soja?
A desconectada – Sim, até não haver mais soja, pelo menos parece-me que foi o que ouvi num destes meses numa rádio, mas aquilo também não estava bem sintonizado… temos de comer animais.
TZ – Com direitos, consciência, sofrimento animal e tudo?
A desconectada – Ah mas eles já não sofrem nada pois não? Pelo menos…
 
O equilibrado
TZ – Olá boa tarde! Uma questão: sofrimento animal, sim ou não?
O equilibrado – Ora essa, boa tarde! Eh eh, claro que não, não é?
TZ – E animais para comer, vestir, calçar, beber, brincar, sacrificar em arenas?
O equilibrado – Eh lá, aqui já temos muitas camadas de análise, muitas camadinhas… Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
TZ – Mas não resulta tudo em exploração e sofrimento animal?
O equilibrado – Pois mas eu também sofro, e você também…O sofrimento faz parte. Há coisas e coisas.
TZ – Como por exemplo, pode concretizar?
O equilibrado – Por exemplo, o meu bifinho à cavalo (não morre o cavalo, hã, eh eh), que coisa mais maravilhosa! Vou deixar de comer porque morre o animal? Morrem cem mil, morrem cem milhões de animais e de pessoas! O meu queijinho? Ai, ui, a vaca é destratada, vou deixar o meu queijinho e o meu requeijãozinho? Minha senhora, é a lei da vida, não há que incorrer em fanatismos.
TZ – O fanatismo seria, nessa ótica, acabar com toda e qualquer exploração dos animais?
O equilibrado – Pois claro, isso é coisa do Estado Islâmico, qualquer dia tenho o cachaço em ripas por comer o meu queijinho…Cá isso não, que não alinho em extremismo.
TZ – Mas não consideraria extremismo, desde logo, o ato e o pensamento de matar um ser vivo que sente, como nós, dor, prazer, medo, segurança ou insegurança, afeto, stress, alegria, para o comer, quando não precisamos? Temos alternativas com valor nutritivo mais do que suficiente no mundo dos vegetais, como sabe…
O equilibrado – Não sei não que isso não está provado…
TZ – Está está… De cidadãos comuns a atletas de alta competição, a dieta vegan é comprovadamente saudável desde que, naturalmente, combine os nutrientes necessários.
O equilibrado – Minha senhora, tudo o que é demais faz mal, é o que lhe digo. Demais é, por definição, demais.
TZ – Veja este cenário: os animais existem, possuem sistema nervoso central, têm os seus habitats, os seus comportamentos, medos, fadigas, alegrias, famílias. Nós chegamos e, pumba, matamos para comer. Não concorda que este é que é um ato desproporcionado, violento, vil, excessivo? Quando para satisfazer apenas o paladar e o hábito, se mata quem sente como nós? Quando não precisamos?
O equilibrado – Minha senhora, volto a repetir, tudo com equilíbrio. E quem sabe se precisa do meu bifinho ou não sou eu, eh eh. Temos de levar isto também um pouco na paródia…
TZ – Equilíbrio, por exemplo, como dar apenas uma ou duas estocadas em metade do número de porcos que consumimos, ou dar um tiro entre os olhos de apenas um quarto das vacas assassinadas todos os dias?
O equilibrado – Não ponha palavras na minha boca, minha senhora, ora… haja bom senso!...
 
A consciente
TZ – Boa tarde…Desculpe a fraca voz, estou no final de uma série de entrevistas, diria que desconcertantes. O que pensa sobre o direito dos animais?
A consciente – O mesmo que penso sobre o direito dos seres humanos: existe, tem de ser exercido e preservado.
TZ – Quer com isso dizer que concorda mesmo que os animais têm direitos?
A consciente – É tema que não se oferece à concordância ou à discordância. Têm direitos morais integralmente afetos ao seu ser, à sua senciência, à sua infinita capacidade afetiva, de compreensão e de expressão, à sua consciência (tão tardiamente demonstrada, esta última, no Manifesto de Cambridge)!
TZ – A senhora está a gozar comigo? Decorou o texto, ou… Sabe mesmo isso de Cambridge, e defende um tratamento de igual respeito pelos direitos humanos e animais não humanos?
A consciente – Sim, claro, caso contrário estaria a trair as capacidades da minha humanidade, que me trazem entre outras coisas a possibilidade de compreensão fina e detalhada de como funciona o mundo e os seres vivos, a obrigação ética de não fazer outros seres sencientes como eu sofrerem, e a obrigação moral de zelar para que sejam salvaguardados da ganância e da ignorância (forçada) de tantos homens.
TZ – Que encanto poder encontrá-la ao fim deste dia! É vegan, então?
A consciente – Sou vegan e ativista. Participo em eventos de sensibilização, contribuo como posso para a causa animal (dentre causas humanas também), tenho o meu grito e a minha palavra bem presentes e procuro participar em projetos educativos que desde cedo possam veicular todas estas ideias tão simples mas tão difíceis de absorver por uma sociedade imbecilizada, dorida e doente. Ser vegan é mesmo o mínimo.
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Nunca haverá um feliz dia do Animal até haver companheiros não humanos sujeitos a abandono, escárnio, matança e atividades criminosas como lutas de galos, touradas e afins. Ter isso presente determina a evolução ou a marcha à ré da nossa humanidade. Posicione-se, leitor, porque só fecha os olhos quem quer. E o coração é ainda mais duro de fechar, quando se sabe, pensa e sente.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Das eleições que era tão bom não fossem da treta

Rápido olá, algodónicos, perdoem as distâncias, ando Além.
 
Sobre Domingo: vai dar sempre errado enquanto não nos livrarmos dos estorvos do costume. Por que esperamos para dar oportunidades a outros? Ah para isto não ir a pior - já foi. .Ah, seria o fundo do poço a avizinhar-se - grata, já lá estamos. Fogo, olhem para o resto da lista dos eventuais, como diz a minha querida J.​ , e escolham um nível de decência mais insuspeito. Alguém que, pelo menos se errar, não o tenha feito e refeito antes, até à exaustão. Fogo! Apesar de tudo e de o Prof. Paulo Borges já não integrar o partido, tenho a certeza que com toda a sua razão por questões de Direção,  votarei PAN. Pelos princípios e pela importância da sua representação parlamentar.
 
Não se esqueçam, não vão de dedos e cabeça feitos acriticamente, pavlovianamente - mirem a listinha, por quem são!
 
A coisa está demasiado preta para discos riscados com repetições estúpidas. Larguem a droga.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Da exaustão

Ando com inexatidões e ausências. Afundo-me em desideias, armo-me em Manoel de Barros. Serôdia, uma parolita só. Muitas parole, tsunamis de palavras que essas, ungidas sejam, nunca faltam. Sofro abstinências de tranquilidade e de vácuos lunares do âmago, de revoluções intestinais e de persistente fastio da aorta.
 
Sinto que é, finalmente, tarde. Tarde para tolerar, tarde para ser tolerada. Tarde para inverter a inexorável curva do meu declinar existencial. Noite profunda e inacordável para que algum remoto arrepio me tire da bruma.
 
Para além de qualquer remissão temporal de qualquer possibilidade de extermínio deste monumento catedralício, desta nuvem mais pesada que a Terra, deste monstro domínio de tédio que eu sou.
 
Tarde para me regenerar do que quer que seja, para me alegrar genuinamente com alguma coisa, para aprender e também tarde para esquecer.
 
Fosse tarde, tardíssimo, para me aborrecer tão extensamente. 

domingo, 10 de maio de 2015

Por dentro

Às vezes há que rebentar um bocado por dentro, e tudo bem. Trata-se daquele rebentamento hemorrágico e que leva vísceras e ossos. Pior que o da onda, sempre limpa e no seu constante rasgar desvirginante, iniciático. Coisas há que nos partem, não sei se ao meio, se em vários continentes que ameaçam formar mundos novos, países irreconhecíveis, fronteiras intransponíveis, tamanha a dispersão de nós.

Por problemas sérios? Não necessariamente. Mas quando coisas entram dentro, deflagradoras na sua bondade e novidade, no seu poder de se fazerem omnipresentes, dentro do lado esquerdo. A utopia maior, ou melhor, o mais fustigador lugar nenhum é a não vontade, a não coincidência. Normal como normalmente cai a água da fonte, sem se importar e sem plano, sem estética adotada, sem mania, sem decisão.

Às vezes rebentar custa realmente, bombistas de nós, e tudo bem.

É esperar pela ajuda civil.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

As árvores de Wolf

 

John Wolf e o seu ARBOrium
(Fotos de Zim)

de 29 de abril a 26 de maio de 2015.
segunda a sexta feira das 10.00h às 19.00h.
Loja Deleme Janelas
Avenida Miguel Bombarda nº102

 
Ontem foi a vernissage do querido e mui talentoso John Wolf, como saberão um dos meus diletos entrevistados na Alegoria: ARBOrium é o nome da mostra.

Ultimamente, e para além dos seus livros, no seu FB é vê-lo postar, de maravilha em maravilha, cotovelos, costas, dorsos da cidade, esgares da cidade em jogo incrível de ângulos e luzes. Ontem, saímos da cidade dentro da cidade e através das pérolas arbóreas de Lisboa, particularmente das modelos do fotógrafo, devidamente plantadas, dançantes e soberanamente guardiãs, elas que são árvores, do Jardim da Parada, no meu bairro salvador. Digo salvador, por que se ainda aguento Lisboa é muito por causa de Campo de Ourique.

O John fotografou corações e artérias que ganharam todo o seu espaço celeste e naturalmente tendem a rasgar os limites da fotografia. "Expressão orgânica" pura, como diz  autor, nenhuma mensagem para além daquela que será, talvez, uma via, mas também uma demanda. E todas as demandas trazem perguntas e sobretudo, vontades "infotografáveis" de evasão e de maravilhosas diásporas do nosso tão disperso ser.

Ficam alguns registos do momento e podem ver mais na página de Facebook do John Wolf, que é aberta ao público, e onde a graça se encontra escancaradamente viva e elegante.

Vão ver e respirar.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

O Mestre

Manoel
 
Às vezes é verdade que a Alegoria vira um pouco a secção necrológica. Normalmente de seres que, pela obra, são meus amados.
 
Todos sabíamos que ouviríamos esta notícia mais cedo ou mais tarde, mas eu pensava sempre "mais tarde, muito mais, por favor." Assim com Niemeyer, e agora com Manoel de Oliveira, que morre aos 106 anos, no seu e meu amado Porto.
 
Não é verdade que se louvam apenas os que vão, não eu pelo menos. A minha relação com um dos maiores realizadores do mundo de sempre nasceu de forma tão espontânea que nunca poderá atribuir-se a modismo ou mania. Estava no cinema para ver outro filme, de que não me recordo, e anunciaram o trailer de O Convento. Fiquei fascinada. Uns dias depois vi o filme, ainda hoje o meu preferido dos que vi, faltam-me muitos felizmente, e Manoel de Oliveira passou a ser o realizador-escritor que eu amava, e que mal fazia um filme eu sabia que tinha de ir ver. A sensação era, e continua, a de distensão no divã, de intimidade com o momento e com a mundiviência manoelina. Mudou a minha perspetiva da filmagem, a minha forma de ver cinema e levou-me a amar uma arte que via com alguma desconfiança pela pouca satisfação que me trazia.
 
Claro que foram importantíssimos os atores de que se rodeou, a matriz de Agustina, mas ele dava o todo e o sopro de vida a tudo isso, a tudo aquilo que depois pairava na imaginação de quem teve a sorte de lhe prestar atenção.
 
Um filme por ano até ao fim, um portento. Porém, trata-se esse facto de um grande extra. Tivesse Manoel de Oliveira feito apenas um, ou dois, ou três filmes, e seria igualmente imarcescível.
 
E não só o País, mas todos os pluriversos devem estar de luto, agitem-se lágrimas de Saturno.
 
E eu amo-o.

sábado, 7 de março de 2015

Sim, sou chata

Quando estamos tristes, ou menos eufóricos, ou mais cansados, ou mais amargurados, ou menos resistentes à vida (por quê resistir-lhe, não deveria ser recebida como delícia?) ou, enfim, tudo isso, parece o sol uma estrela zombeteira, insolente e espaçosa. Invasiva da nossa treva quentinha, da nossa introspeção sorumbática, modelo nu trocista, a encandear-nos a neurose.
 
Nesses dias, prefiro um céu de cinza, em todo o esplendor do seu choro, chuva.
 
O céu azul apanha-nos com a sua crueldade fina, não deixa nada escondido.
 
Às vezes precisa-se de bruma. De escuro. De noite.
 
Assim se foge da luz.

domingo, 1 de março de 2015

Parabéns, cidade mais amada!


Samba do Avião, por Tom Jobim, O carioca, e a Banda Nova


Só liguei para dizer, Rio, que te amo.

Muito!

Faz hoje exatamente 450 anos que Estácio de Sá veio e se fundou a Maravilhosa. Só lá estive duas vezes, mas já a amava antes de pôr um pé.

Beijo o seu chão.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Alegoria da Grécia

Yanis Varoufakis e Alexis Tsipras, o duo dinâmico.
Foto da Reuters
 
 
Estimados, saravá!
 
Rápida, subreptícia, sibilina e murmurante, pssssssst !
 
Abram o olho. Os. Meus queridos, há que optar. A Alegoria da Primaverve está com a Grécia, com o povo grego, com o Yanis, com o Alexis, e com cada um que demonstrar esforços para honrar o primeiro compromisso de qualquer governo: servir honradamente o seu povo.
 
Por favor leiam e, se concordarem, assinem e partilhem esta petição online, que consiste numa carta aberta ao povo e ao governo gregos, por parte do povo português signatário. Será traduzida e entregue na Embaixada da Grécia em breve.
 
É que, camaradas, isto não é tudo a mesma coisa, não somos todas iguais. Eh bien.
 
Grata, beijos e abraços tamborínicos.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Versículos de um anjo insano


 
Nasci na antiga freguesia dos Mártires,

Antes de reordenarem Lisboa,

Viver é-me difícil

Como não seria, se abri a pestana

Em tal augúrio-freguesia?

Há poucas palavras no mundo

Poucas, contra um batalhão paradoxal de muitos dicionários, prontuários, gramáticas

Efetivamente, verifica-se um excesso de significados

De línguas, de sentidos

Para tão poucos vocábulos

Demasiados ouvidos, demasiados ouvires

Para estas palavras

Viver é-me difícil

Como não seria?

É-o em português, como seria em finlandês, mesmo em sânscrito

Mas em português é mais trágico

Naufragamos como ninguém

Deveríamos ser históricos pela grandeza do nosso naufrágio

Mais do que por comezinhas navegações à bolina ou ao desnorte

Adamastores somos nós

Viver é-me difícil

Que outro porto seria, com esta mesma bússola carregada de inércia e fado?

Há infinitos estertores de morte na boca dos vivos

Nas pregas de bocas idosas, nos dentes alvos jovens, nos músculos atletas, nos ziguezagues das conversas, nas montras, nos chapéus, nos volantes, nos pneus, na sombra lívida da lua até, por vezes

No guinchar dos bebés

Nos olhos tristes do cão, nas patas que malevolamente amarram aos pombos e que eu vejo, e isso viola o meu coração, sangra-me os dias, como é que engulo comida?

Muita construção civil, muito barulho, muitos gestos. Como aguentar a canseira dos olhos?

Depois há muitos canais de televisão, e isso torna a vida difícil a qualquer um, pois que as desgraças do mundo multiplicam-se em diferentes quadradinhos, que quintuplicam por sua vez as mil e seiscentas imagens sobre cada caso fatídico

Não há doze pessoas que morrem, há um milhão e vinte e quatro no mesmo episódio

Não são duas torres que rebentam, são seiscentas e quarenta e oito

Não são quatro bandidos, são um milhão, trezentos e noventa e cinco

É o cúmulo-limbo. Como não ser difícil viver?

São tão poucas frotas de navios

Para o tanto que precisaria de levar, para a abundância de atas dos concílios comigo, para as constituições pseudo liberais que redigi, inspirada nos trânsitos intestinais- oh, musa pia

A pia é uma musa e, leitor, não diga que não

Cada cagalhão, cada obra prima que sobe ao pensamento

Não diga que não

Há um estridor de folhas secas pelos passeios, por outro lado

E em ambos os lados da rua

Que me não deixa pensar

Viver é-me difícil

Às vezes ganho fungos nas unhas dos pés

Viver é-me difícil

Os cabelos branqueiam-me todos os dias

Viver é-me difícil

O Rio está muitas vezes muito longe da minha conta bancária

Viver é-me difícil

Odeio o sistema

Viver é-me difícil

O sistema odeia-me

Viver é-me difícil

A tiroide, a ânsia

Viver é-me difícil

A finitude dos dias que virão

Viver é-me difícil

A tua ausência

Viver é-me difícil

A minha ausência

Viver é-me difícil

O meu talento equívoco, intermitente, publicidade enganosa, díspar

Viver é-me difícil

A minha alegria entornada num chão de cinzas

Viver é-me difícil

Eu ser cinzas um dia

Viver é-me difícil

Eu ser

Viver é-me difícil

Eu

Viver é-me difícil

Não saber ser outra coisa

É-me difícil, ouviram?

Quero revoluções, quero faixas na rua,

Primaveras árduas

A gritar, a urrar

A matar por esta pequena e única

Única mesmo, de livro não sagrado

Única verdade

Que nem morrer me deixa

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Com o novo mês, uma coisa realmente boa

Algodónicos, nem sei que vos diga, provavelmente pensais, e com plausível tino, que este ano chegamos aos doze posts (um por mês, cof cof), mas se for para trazer coisas desta qualidade, que importa isso?
 
Foi hoje mesmo lançada uma página no Facebook sobre manifestações/ ações de rua em Lisboa, nestes últimos anos. Anos de espanto, de aperto, de medo, de solidariedades, de divas a marcharem com anarquistas (eu), de desfiles coloridos pelas ruas/rios/gaivotas de Lisboa, no rastro da Utopia, ou de mais qualificadas pistas utópicas. As palavras são armas, são descanso e ouro, voo, navegação, ansiedade, paz e transformação. Se as boas palavras não mudarem este espúrio mundo para melhor, morreremos, mudos, na praia porque, capazes de receber o sopro vivo do nosso sentimento, as palavras podem envolver como nata, encantar o planeta, acordar a Terra, salvíficas, escorrentes, imorredouras.
 
Como vívido registo, digno de uma perspetiva histórica, sobre o que diferentes homens e mulheres proclamaram, esperaram e sentiram nas ruas de Lisboa, em diversas frentes (independentemente da minha posição sobre as mesmas), e continuam a proclamar, esperar e sentir, tenho o prazer de divulgar a página, cujo título evoca a obra e a ideia de Zeca Afonso: Este rio, este rumo, esta gaivota .
 
Passem lá, e divulguem estas galerias de belíssimas fotografias e de vídeos emocionantes.
 
A inspiração também se colhe nestes momentos, nestes grandes e pequenos adventos.

sábado, 10 de janeiro de 2015

O que é preciso, leitor, é iniciar o ano com otimismo

Outro milho

Sento-me
Qual verdadeira ceifeira
Em cima de um penedo sobranceiro ao mundo
Sem tentações, nem tentador
Só eu, o penedo, a ceifa e o mundo
Mas o mundo
Não contém os ingredientes necessários e vitais
Sinto-me
Na derradeira
Lomba da estrada
Cadência da flauta
A primeira hora da antemanhã
Do antenada
A perfeita alvorada
Do preto
Eu sou
Como os sem porto
Sem mapa, sem rota, sem chegada
Muito branca, ou muito roxa e farta
Desta vilã cegada
Da fanfarronada estéril das minhas gulosas tripas
Ter tudo, não ter nada
É-me intocável
É-me de nácar,
É-me frio
Só sei
Que vou procrastinar a madrugada
Até alguma coisa raiar
Nas veias
Até alguma veia pulsar
Nas teias de aranha do cérebro dentro do crânio dentro do barrete dentro de casa dentro do bairro dentro da puta urbe dentro do planeta pulha dentro do ventre de alguma estrela a cair de velha que há de ser comida por Andrómeda
Porque estou selada
Fechada numa rua aberta sem árvores
Vou dar o porvir
Aos pombos