domingo, 17 de janeiro de 2016

Fico


Sirvo para dar comida aos pequenos pássaros. Para vigiar gatos doentes da minha janela meio suja, a chuva que a lave que não nasci para perder tempo a ganhar tempo e ou jeito. O mundo aflige-me porque é uma grande sala de urgências de hospital a céu aberto, doida. Levaram-me para as urgências e eu queria arrancar o soro do braço para desaparecer daquele cenário dantesco, e quero arrancar o soro agora, o da obrigação diária, para fugir desta fealdade desarmante. A fealdade em que nos tornamos desde a fecundação, seus abortistas criminosos. Criminosos, sim. Isto é equívoco na terra mas todos temos direito a ver o equívoco, não é privilégio de alguns este enlouquecimento diacrónico.
 
A solidão que segue ao descobrimento de outras ilhas; como será a solidão dos barcos, onde o grande coração dos barcos, nas quilhas, Professor Contente? Voltar ao despojamento de perder lembra aquelas grandes telas desterradas de Guillaumet, tintas de aridez e não sei se cansaço. Não sei já se me canso, se estou antes na plenitude do meu possível, sem hipótese de alteração por menor que seja, sem possibilidades de operar com menos energia, ou com mais força. Eu que queria ser uma eterna flor fresca, desertifico-me de presente. Com o passado e o futuro podemos bem. Se o presente se nega: para onde ir?
 
Quero de uma vez a solidão das seivas que furam a terra, a poesia indestronável dos troncos e ramos anoitecidos do arvoredo, o cheiro que traz a  vida como só o dos eucaliptos pode, a força dos ninhos, a força dos ninhos.
 
Gostaria que me deixassem. Que me deixassem.
 
Preciso de ir.
 
Para finalmente, naufragada, deserdada, desgrenhada, desvanecida e encantada, poder ficar. 

3 comentários:

Anónimo disse...

Se o presente parece negar-se porque não procurá-lo.
Nos sinais de vida à nossa volta.
Nas pequenas coisas que descobrimos em cada recanto das ruas por onde passamos.
Nos companheiros do autocarro.

Vive!
Com a enorme força interior que tens e que revelas em cada palavra.

Anónimo disse...

Que pena não publicares os comentários mulher que dá comida aos pequenos pássaros, que vigia gatos doentes da janela meio suja, que se aflige com o mundo que vê como uma grande sala de urgências.

Tamborim Zim disse...

Grata queridos/as anónimos/as :) Sois os maiores