domingo, 13 de março de 2016

A consulta do Além

O Dr. António Espadachim cofiou o bigode louro. Diacho, 18:50 e ia entrar a paciente das 17:00. Tudo atrasado, todos a abanar-se e a bufar na sala de espera. Agustina Santos, vamos a isso.

- Boa tarde Sr. Dr. Espadachim - saudou Agustina, com voz esmaecida.

António vasculha por uns segundos os ficheiros no computador, ajeitou o relógio em cima da mesa (olhar de viés para o pulso durante a consulta só resultaria em humilhação e constrangimento para os doentes, assim substituídos nas suas premências pelo desfile militar de Cronos), afivelou um sorriso caloroso e levantou-se para cumprimentar a cansada senhora.

- Agustina, como se encontra?

-  Ai, nada bem Sr. Dr..

Diga-me alguma coisa que eu não saiba, minha santa - congeminou mui rapidamente Espadachim. Não se queixava, porém, ser Psicoterapeuta fora uma escolha e uma missão. Mas quarenta anos de profissão já pesavam.

- Então, como foi a semana?

- Bom, as duas semanas....

Hum, resmunga o Psicólogo para o intra-eu. Tenta abrir a ficha, o ficheiro não abre. Teme um vírus e fixa-se, sereno, no rosto de Agustina.

- Exato...Está com um ar cansado. Como tem dormido? Agustina, desliga-me por favor a luz do interruptor? A do pequeno candeeiro basta-nos, creio. É que o paciente anterior via mal, e não queria parecer um fantasma, eh eh.

Agustina arregalou os olhos. Tímida, porém, assentiu.

-Pois, cheia de nervos, o problema continua e ando muito nervosa. Olho para os pulsos e imagino-me a cortar as veias, mas Sr. Dr., eu nem posso ver sangue. Também me imagino a atirar de uma ponte qualquer. Mas não sei nadar.

Espadachim arqueia as sobrancelhas. Hora solene de não dizer, como em todas, nenhuma incoveniência, mas tinha de abordar o aparentemente contraditório facto.

- Nadar seria importante ao atirar-se da ponte? - perguntou, com melíflua  semi-doçura.
- Ai pois, vá que eu não me finava logo? Ficar ali a engolir água e a ser devorada por tubarões...

Not that fast, ocorreu imediatamente a Espadachim. Reprimiu um bocejo, tossicando.

- O sofrimento. Sempre o sofrimento, não é? Uma experiência como a sua, Agustina, nunca suprime o sofrimento como um receio, mas que sabe que pode aprender a arrumar, a circunscrever no tempo e no espaço. Uma violação fere para sempre, contudo, e é saudável partirmos dessa verdade.

Agustina fitou o psicólogo, piscou os olhos.

- Bem, é realmente quase uma violação, este sentir permanente medo de tudo. Do escuro principalmente... - Olhou para o candeeiro de soslaio, António mordeu ligeiramente os lábios e resolveu ir em frente.

- O seu padrasto tem tentado contacta-la?

- O meu padrasto? O meu padrasto morreu há dez anos...não percebo o que...

Shit shit shit. Espadachim espalhou-se. Não queria tentar abrir de novo o ficheiro.
Reminiscências sucessivas maceravam-lhe o cérebro sem ajudar. E estava cheio de fome. E há três horas sem ir à casa de banho. Ferro sobre ferro. Mas o doente não podia perder a confiança, não podia perder a consistência da coisa, o próprio apertadinho ou não.

- Sabe que a nossa mente, a nossa mente comunica mesmo com o que não está, e confabula igualmente ser chamada...entende?

Agustina arregalou novamente os olhos, quase se persignando. Mas teve vergonha, aquelas pessoas da ciência podiam troçar da sua fé.

- Refere-se assim a um contacto...do Além?

- Não, não, Agustina. Do Aquém, do Aquém. Sempre do Aquém e do Aqui. Daqui - Espadachim sorria, confiante, apontando a cabeça semi-calva.

- Hum.... não, não tenho pensado no meu padrasto. E também, depois do que ele fez à minha tia-avó... nem pensamentos, Dr., nem pensamentos!

António Espadachim perscrutou o ar. Incunábulos, por Psiché, desçam sobre mim e iluminem-me que isto está bravo.

- A tia-avó foi, também, uma vítima?

- Uma vítima? Sabe lá Dr. Espadachim, roubou-a! Levou-lhe tudo, tudo!

- Mas por vingança pessoal, por capricho? Tendo sido o seu padrasto um homem abastado...

- Abastado! Ah, coitado, um Zé Ninguém, andava sempre a pedir.... Tinha um ou outro terreno mas não fazia nadinha.

- Ou seja, fazia, mas só aos outros.

- Pois pois!

- E Agustina, e o trabalho?

- Vai bem, sabe que ser parteira é o que mais gosto...

Espadachim escorregou a mão direita para o rato. O ficheiro abriu. Buf, fechou. Écran branco.

- E como tem dormido?

- Com muitos nervos, Dr., como disse... Já me tinha perguntado-sorriu bondosamente. Estaria cansado, coitado.

- Sim, mas refiz a pergunta... Técnicas Agustina, técnicas-sorriu com bonomia. Não podia arriscar muito mais, visivelmente havia ali, Houston, um qualquer problema.

- Tem pensado no sucedido? - perguntou em tom neutro.

- Em...quê?

- Naquilo que lhe aconteceu.

- Oh, sim...permanentemente. A marca fica.

- Claro. Uma violação fica e repete-se.

- Amm... Sim, a casa ficou toda espatifada. Violação de propriedade, sem dúvida.

- A Agustina não estará a exteriorizar demasiado os efeitos do sucedido? Como se
esquecesse, dessa forma, o que se passou com o seu corpo?

- Hum..eu no meio do assalto só sofri uma arranhadela quando a estante caiu e me roçou no braço...

- Agustina, está em negação. Uma violação é uma violação. Está preparada para o assumir?

- Mas Sr. Dr. eu não fui violada, a minha prima é que foi, pelo carteiro que era irmão do meu noivo! Muitas vezes pensei que preferia ter sido eu a vítima!...

A prima, o carteiro, o noivo, trina salganhada! O dedo no botão do rato, o branco imaculado-impiedoso do écran. Nada.

- Agustina, a violação não tem de ser connosco, torna-se universal. Não o foi, mas sofreu como se fosse na pele. É importante não esquecer isto, não lhe parece?

- Sim claro Sr. Dr., e não o esqueço, apesar de terem passado dezoito anos.

Espadachim tossicou. Era a hora, via a reforma no horizonte como um sol nascente libertador a aproximar-se em redentoras passadas ígneas.

- Vamos terminar agora, Agustina. Um resto de bom dia e até à próxima consulta...Vou marcar aqui à mão pois estou com problemas no computador.... Dia 13, Agustina Santos.

- Saraiva Dr., Saraiva.

Espadachim fitou a doente comicamente. Parecia ter sido trespassado por uma bala mesmo nos recônditos do cérebro.

- Claro, Saraiva, Agustina Saraiva, aqui está.

Cumprimentos, adeuses.

Complicadamente, o écran azulou. O ficheiro abriu. Demasiadas Agustinas, duas bastavam. Épico. Espadachim recostou-se na cadeira. Esperem vinte minutos agora. No mínimo.

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