sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Aquele abraço deliciado a Cronos

 
Oração ao Tempo - Caetano Veloso
 
 
Pois que não se pode dizer que os governos sejam completamente inúteis, não senhor. Escassas vezes, também lhes assiste uma outra ideia, para dizer o mínimo, luminosa.
 
Para 2014, lembraram-se (salve, salve), de abrir a possibilidade de trabalho a tempo parcial na Função Pública, onde labora esta fiel servidora (aqui sem ironia), com o corte salarial a corresponder "apenas" ao tempo não trabalhado e não a outros cortes advindos das loucuras da austeridade. Fiquei de orelha em pé, de olho em riste, de melguice em aprumo, e finalmente decidi-me: este ano, e com início a 1 de Fevereiro, mes chéris, não trabalho às segundas-feiras. Acho muito boa ideia, malgrado ter menos vil metal, trabalhar 4 dias e descansar 3. Não é de todo mau negócio. E como para o ano pode já não haver boas lembranças destas... aproveitemos mas é!
 
O tempo: o puro luxo.

Zim no metro

 
Olha a chinfrineira ilícita!
 
Meus diletos, não é à toa que os meus transportes preferidos são: pés, barco e avião. Não tenho culpa de não me adaptar a todo o espírito do transporte público (leia-se que o cheiro de carros em geral e em particular também me enjoa solenemente). Mesmo assim, verdade seja dita que o metro é, dentro da cidade, o meu transporte de eleição, sendo muito raro apanhar outro (que não a minha frota de táxis, como chamo - senhores taxistas de quem gosto e cujo contacto tenho e que me apanham onde e quando preciso).
 
Pois hoje vinha numa curta viagem de metro. O meu infortúnio começou logo quando me sentei. Um horrível cheiro a comida que me parecia vir de uma saca piolhosa de um homem que ia no banco da frente, com umas unhas, enfim, inenarráveis. Devia ser alguma doença, enfim. Aguentei uns segundos e optei por levantar-me e seguir estoicamente a pé até ao Rato. Estava muito bem em pé quando, a partir da estação das Picoas, o meu infortúnio aumenta. Lei de Murphy. Começo a ouvir uma música ALTÍSSIMA, e até procurei ver se o homem estranho se tinha decidido pelas tecnologias. Não, continuava a ler qualquer coisa. Tinha entrado uma adolescente anafada, que se sentara no banco da minha primeira tentativa, e eu estava cada vez mais enfastiada, diria já ressabiada com a música brega e nefanda e alta. Dirijo-me à moça muito polidamente.
 
- Esta música é sua?
- É.
- Pode baixar, por favor? Não estava a perceber de onde vinha.
 
Ela baixou, eu sorri-lhe e ela sorriu, menineira.
 
Pensei "que fofinha", porque deixei de ouvir qualquer ruído. Um segundo depois, uma musiqueta bera alta eleva-se da telefonezinha. Era a adolescente perseguidora, que exibia um ar entre o desafiador e o ligeiramente tímido perante o meu olhar sobre ela. Esperei, trocava olhares de "o mundo está perdido" com uma menina que seguia ao meu lado em pé, até que me virei de novo.
 
- Olhe tem de baixar.
 
- Eu já baixei. É a música.
 
- É um toque?
 
- Não. - Respondeu-me quase em dahhh. - Eu já baixei, é a música.
 
- Mas tem de baixar mais, está num transporte público, isso incomoda as pessoas. Ponha fones.
 
- Não tenho!
 
- Há uns tão giros... - aventei, maternal.
 
O estuporzinho fez um - Oh! - displicente, e lá seguiu com a musiqueta pelo metro fora, mesmo depois de sairmos.
 
Ao sairmos da carruagem, a moça que seguia em pé aproximou-se e disse-me, a sorrir:
 
- É a primeira vez que vejo alguém a pedir para baixar.
 
- Pois, e é a primeira vez que eu peço também... - acho eu.
 
- É a primeira vez que vejo alguém com a delicadeza de pedir para baixar - insistia a moça, graciosa e simpática.
 
- Como viu, não adiantou nada - sorri. - Adiantava se eu me chateasse, mas não estava para isso.
 
- E não valia a pena - disse a moça.- E se calhar até é melhor assim, porque com os fones destroem os ouvidos...
 
875b cn4mp5045linc5o,p5o n5m Que se lixem os ouvidos destes FDP desta escumalha nefanda e irrisória (pensei mais veloz que um avião a jato).
 
- Bom - argumentei suavemente - mais vale destruírem os ouvidos deles que os nossos...
 
Despedimo-nos com simpatia.
 
Algumas notas:
 
A apatia generalizada do pessoal que, pagando um bilhete, acha normal ser vilipendiado por estas criaturas. Tudo bem que a pessoa pode temer iniciar a coisa, mas se um camarada cidadão enceta o esquema, por que não apoiar? Todos contra a música alta, todos pelos fones, ora!
 
A miudinha, sem graça e púbere, ou acha aquilo tudo normal e à minha pessoa uma grande fastidiosa, ou adora aborrecer os demais seres humanos. Depois fiquei aborrecida: deveria ter-lhe gritado que parasse, puxado o travão de emergência, parado o metro, fazer um escândalo? Mas não me apetecia mesmo nadinha gastar mais energias, que andam tão derrotadas! Porém, não deixo de pensar que assim não foi formativo para a miúda, que continuará a atazanar as pessoas com o seu volume musical (de mau gosto).
 
E depois, a querideza da minha outra interlocutora, preocupada com os ouvidos dos meliantes do desassossego, e ao mesmo tempo a achar uma "delicadeza" a minha ação. Oh céus, mas não deveríamos todos indignar-nos e recusar as anormalidades que miúdos e graúdos nos imponham?
 
Como diria uma personagem de novela, creio que a Marieta Severo, sobre um rapaz que fazia de seu filho, também serei sempre uma "perplexa com a existência". Bufante, ressabiante, reclamante e, por vezes, "inacreditante".
 
Ainda bem que vou e venho a pé do labor todos os dias.
 
Vamos fazer um movimento contra música alta sem fones??

É que estes adolescentes não têm charme nenhum, nenhum, e nem desconfiam disso. Penalizante.