quinta-feira, 22 de junho de 2017

O que nos leva um incêndio

Coelhal, Pedrógão Grande
(Foto de Zim)


64 pessoas mortas. A minoria, ainda assim atroz, em aldeias selvaticamente afligidas pelo monstro de línguas e bafo a esmo. 47 numa estrada, a tentar preservar a vida. O homem que perde a mulher e a filha, tendo seguido em carros distintos para transportar familiares. O rapaz que, desesperado, foge e leva consigo a mãe num automóvel que, minutos depois, os levaria para sempre para um triste e doloroso inexistir. O casal que, com os filhos, passara umas horas felizes na Praia das Rocas, e tantos outros. Os choques, o fumo sem fim, as mortes sentadas, deitadas no alcatrão ardente. Os meus pais e a sua aflição, felizes sobreviventes depois de terem sido rodeados pelo fogo na sua casa, com vidros a partir e a trazer ainda mais a presença de uma morte que lhes pareceu, em alguns momentos, certa. Os meus familiares e amigos aflitos e abraçados, na espera do que fosse. O gato Pitangui, que não sei se alguma vez tornarei a ver, que só caminhava entre os meus pais, que não me abandonava um segundo nos meus passeios pelo campo, que fazia “mucancas”, segundo o meu pai, para ser engraçado para nós. Outros gatos, outros cães, ovelhas, caracóis, passarinhos, serenamente inertes no chão onde se despediram de todas as canções, de toda a alegria da sombra. E outros tantos. As casas, as terras, uma aldeia que eu amava, o sítio mais amado por mim, em cinzas. O sentimento lar, para tantos. Os abraços que nunca mais se repetirão, os vizinhos que ficam sem outros vizinhos, amigos, familiares, lembranças. As lembranças daquela estrada onde também deixei uma hortense. O desespero, a minha agonia, a confusão, a dor sem córregos para continuar de forma a limpar-nos. O retardar a vontade de chorar e gemer tudo, por tudo ser tão cortante. A ferro, a fogo, literalmente. Uma cadelinha que encontrei com Leishmaniose, no lugar do Pitangui, e que pode ser tenha tido sorte.

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