segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Coisas que só a mim ou Diálogo recente e real

Há poucos dias, Tamborim Zim encaminhava-se para um centro comercial que lhe é caro e deu com os olhinhos argutos numa senhora que ali costuma pedir esmola, exibindo um cartaz que, numa letra indefetível, garante ser portadora de doença grave. Trata-se de uma mulher nova, ainda que triste e extremamente envelhecida pelos hábitos doentios que certamente a tomaram e a afastam da sua saúde e liberdade. Por saber isso, prefiro dar-lhe uma ou outra coisa para comer, de vez em quando. Tem uns olhos grandes e lindos, cor de avelã, que ficam cada vez maiores à medida que a cara emagrece em cada minuto.
 
Decidi, naquele dia, trazer um saquinho com alguma variedade de (poucos) produtos, e quando saí do centro, ela estava já sentada e continuava a pedir. Deixei o saco junto da senhora, que me pergunta com voz algo lúgubre (e segue o diálogo):
 
Senhora dos Olhos de Avelã (SOA) - O que é que tem? - referindo-se ao saco.
 
Tamborim Zim (TZ) - Tem pão-de-forma, leite de soja...
 
SOA - Leite de soja?? - pergunta, horripilada.
 
TZ - Sim.
 
SOA - Fogo!!...- e o perfil franzia-se em lancinante tortura.
 
TZ - Bem mas a senhora não quer?
 
SOA - Eu quero mas o que eu queria ninguém me dá!... - desolação.
 
TZ - Pois, mas sabe, as pessoas também não podem...
 
SOA (com surda acusação) - Com o dinheiro que a senhora gastou podia ter-me dado uma moeda.
 
TZ (professoralmente) - E o que é que ia fazer com a moeda?
 
SOA - Eu preciso muito de ir ao hospital - e a feição assumiu a lamúria de uma menina inocente.
 
TZ- Olhe eu vou deixar aqui. Adeus.
 
SOA - (exasperada e vencida) - Acabo por ter de andar sempre carregada de merda, e depois tenho de deitar tudo fora porque não consigo comer!
 
TZ - Isto não é merda, é comida. E não devia deitar fora, podia dar a outras pessoas que precisam.
 
SOA - Eu não conheço ninguém, sou sozinha - com dignidade solene e boca desdentada.
 
TZ - Bem se não quer eu levo.
 
SOA - É que a senhora vem e deixa-me o saco com merdas, depois vem outra e deixa-me outro saco com merdas, e o que é que acontece? O que é que acontece??? - repetia, já sonoramente.
 
TZ - Tem de deitar fora.
 
SOA - Tenho de deitar fora - repetiu, calmamente.
 
TZ - Eu percebo a sua raiva, mas eu não tenho culpa da sua situação, está a ser injusta.
 
SOA (a olhar-me com os seus imensos olhos, e numa tocante franqueza) - Se a senhora tivesse de dormir na rua...
 
TZ - (tocada e apatetada com aquela razão que fazia a minha pretensa razoabilidade sumir-se em frangalhos) - Olhe, diga-me só se vai deitar fora porque tenho a quem dar.
 
SOA - Não, não...
 
TZ - Então deixo aqui, ao pé da senhora. Boa noite.
 
SOA - Boa noite, boa noite - tipo: vai de retro, tu e o pão e a soja e o raio do mundo inteiro contigo!
 
Esquecera-me, na minha curta enumeração, de dizer-lhe que também lhe deixei uma tablete de chocolate preto, espero que goste.
 
Este diálogo, misto de comédia e densa tragédia, deixou-me com um sentimento de impotência tremendo. E só me ocorria por que é que as televisões não se lembram de fazer programas a contar a forma como ajudaram a restituir vidas a sem-abrigos e a pessoas que mal sobrevivem nestas condições de humilhante indigência.
 
Digam-me se não sou um cromo improvável e uma Mrs. Bean chapada - e se este mundo não é duro de roer.

6 comentários:

Tétisq disse...

Hoje no comboio (intercidades, de longo curso e por isso dos mais caros) a meio da viagem um homem com cerca de 40 anos distribuiu umas fotocópias, a todos os que seguiam na carruagem.
Eu não aceitei porque já fui abordada pelo mesmo homem na viagem Porto-Coimbra muitas vezes. No papel diz que não tem trabalho e que a mãe ficou doente e não o pode sustentar...e a pede dinheiro.
Uns minutos depois volta a recolher as fotocópias e o dinheiro de quem se comove com a ladainha. A cara de poucos amigos com que recolhe os papéis aos que não dão moeda é muito feia e a falta de respeito com que mete a mão nos sacos entreabertos de algumas senhoras que não percebendo que o papel era para devolver o guardaram, pior ainda...

Tamborim Zim disse...

Sim, esse esquema é muitp irritante tb... Baf, q mundo este em q andamos.

Pagu disse...

És croma sim, miss Bean sim, ora, onde já se viu dar comida a mendigos? ainda por cima vegan? quer dizer, já não basta ser indigente ainda tem que ser vegan....não há paciência....

És o maior cromo. Sim.

Tamborim Zim disse...

Pagu, Pagu! Nunca entenderão a sensibilidade orquidiana da minha pessoa, znif!...

Pagu disse...

Ora, és "beana", pronto, és beana.

Tamborim Bean...que tal?

Tamborim Zim disse...

ahahahahahah Tamborim Bean está, em todos os sentidos, magnífico!!!! Amei!!!!