Antes de reordenarem Lisboa,
Viver é-me difícil
Como não seria, se abri a pestana
Em tal augúrio-freguesia?
Há poucas palavras no mundo
Poucas, contra um batalhão paradoxal de muitos dicionários,
prontuários, gramáticas
Efetivamente, verifica-se um excesso de significados
De línguas, de sentidos
Para tão poucos vocábulos
Demasiados ouvidos, demasiados ouvires
Para estas palavras
Viver é-me difícil
Como não seria?
É-o em português, como seria em finlandês, mesmo em
sânscrito
Mas em português é mais trágico
Naufragamos como ninguém
Deveríamos ser históricos pela grandeza do nosso naufrágio
Mais do que por comezinhas navegações à bolina ou ao
desnorte
Adamastores somos nós
Viver é-me difícil
Que outro porto seria, com esta mesma bússola carregada de
inércia e fado?
Há infinitos estertores de morte na boca dos vivos
Nas pregas de bocas idosas, nos dentes alvos jovens, nos
músculos atletas, nos ziguezagues das conversas, nas montras, nos chapéus, nos
volantes, nos pneus, na sombra lívida da lua até, por vezes
No guinchar dos bebés
Nos olhos tristes do cão, nas patas que malevolamente
amarram aos pombos e que eu vejo, e isso viola o meu coração, sangra-me os
dias, como é que engulo comida?
Muita construção civil, muito barulho, muitos gestos. Como
aguentar a canseira dos olhos?
Depois há muitos canais de televisão, e isso torna a vida
difícil a qualquer um, pois que as desgraças do mundo multiplicam-se em
diferentes quadradinhos, que quintuplicam por sua vez as mil e seiscentas
imagens sobre cada caso fatídico
Não há doze pessoas que morrem, há um milhão e vinte e
quatro no mesmo episódio
Não são duas torres que rebentam, são seiscentas e quarenta
e oito
Não são quatro bandidos, são um milhão, trezentos e noventa
e cinco
É o cúmulo-limbo. Como não ser difícil viver?
São tão poucas frotas de navios
Para o tanto que precisaria de levar, para a abundância de
atas dos concílios comigo, para as constituições pseudo liberais que redigi,
inspirada nos trânsitos intestinais- oh, musa pia
A pia é uma musa e, leitor, não diga que não
Cada cagalhão, cada obra prima que sobe ao pensamento
Não diga que não
Há um estridor de folhas secas pelos passeios, por outro
lado
E em ambos os lados da rua
Que me não deixa pensar
Viver é-me difícil
Às vezes ganho fungos nas unhas dos pés
Viver é-me difícil
Os cabelos branqueiam-me todos os dias
Viver é-me difícil
O Rio está muitas vezes muito longe da minha conta bancária
Viver é-me difícil
Odeio o sistema
Viver é-me difícil
O sistema odeia-me
Viver é-me difícil
A tiroide, a ânsia
Viver é-me difícil
A finitude dos dias que virão
Viver é-me difícil
A tua ausência
Viver é-me difícil
A minha ausência
Viver é-me difícil
O meu talento equívoco, intermitente, publicidade enganosa,
díspar
Viver é-me difícil
A minha alegria entornada num chão de cinzas
Viver é-me difícil
Eu ser cinzas um dia
Viver é-me difícil
Eu ser
Viver é-me difícil
Eu
Viver é-me difícil
Não saber ser outra coisa
É-me difícil, ouviram?
Quero revoluções, quero faixas na rua,
Primaveras árduas
A gritar, a urrar
A matar por esta pequena e única
Única mesmo, de livro não sagrado
Única verdade
Que nem morrer me deixa
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