Tenho andado em tantas múltiplas atarefações - e, ok, amiúde preguiça -, que procrastinei indevidamente o relato de um episódio real, passado no meu bairro umas semanas antes das férias.
Vinha eu a chegar do trabalho quando, já próxima da minha rua, avisto um senhor de cabelo para o compridote, tipo Beatles, em estranha posição. Pensei de imediato que aquela pose daria uma fotografia tremenda, já que de onde estava o via de cócoras, mas com o corpo cortado, se é que me entendem. Avanço e, quando chego junto do vizinho, paro para perceber.
- Pssssiu, comidinha da boa, anda cá - chamava o senhor.
Lá inquiri do que se tratava, tipo alcoviteira-desocupada-auxiliadora-melga. Sucedera que o seu gato, apanhando a janela do rés-do-chão aberta, voara para a rua, postara-se debaixo de um carro ali estacionado, e nem à lei da bala aceitava tornar a casa. Nem paté, nem psssiu psssiu, nem as eventuais saudades a tomar posse daquele corpinho teimoso, rien. Sugeri que pusesse o caixote do lixo junto à janela, para facilitar a subida do diabinho, mas qual o quê. Nem caixote, nem "comidinha da boa", nada. Entretanto, o senhor já estendido no chão, quase com a cabeça debaixo do carro, e o estuporzinho imperial.
Deu-me pena, o senhor preocupava-se pois em breve a sua companheira chegaria e saberia que o mimoso gatinho se tinha auto-expatriado para a rua. Logo entendi por que razão o vizinho não o arrastou por uma pata: a bicha era de rancores, fazia faaas e fuuus zangados, e disse-se que arranhava. Pessoalmente não sou a maior fã de gatos do mundo, e tenho horror às suas potenciais arranhadelas e aos seus bufares sinistros. Mas o certo é que estava desolada por não poder ajudar. Disse ao vizinho que ia ligar ao gatil municipal, para nos ajudarem.
Fui para casa procurar o número, nada. Tive de telefonar à PSP do bairro que, sempre querida, me facultou o número desejado. O gatil que não tirava gatos debaixo de carros, apenas os recolhia a pedido...Excerto da conversa.
Gatil - Pois é que nós isso não fazemos...
TZ - Pois mas coitadinho já viu, saiu pela janela e os donos estão desesperados a querer que volte para casa, e está a fazer-se noite.
Gatil - Se ele estivesse no telhado, por exemplo, recomendava que chamasse os bombeiros, mas eles assim não vão.
TZ - Pois, mas vai dar no mesmo, não é? No telhado ou na rua, ele vai ficar sozinho à noite...
Liguei para os bombeiros. Fiz o choradinho do gatinho coitadinho perdidinho na ruazinha na quase noitinha. Eles foram mesmo muito compreensivos e gentis, e disseram que viriam. Agradeço muito e volto para a rua da cena gatídea.
Entretanto, já havia umas três pessoas na rua, a acompanhar o desdobramento físico-persuasor do vizinho para tirar o gato debaixo do carro. Chamados, vassoura, comida, paté, promessas, nada. Esperámos ainda um bocado, o suficiente para a rua e as janelas circundantes se irem enchendo de gente. Entretanto, os vizinhos em causa tinha a casa para arrendar, e de vez em quando eramos interrompidos por potenciais interessados. Um must see.
De repente vimos uma pequena carrinha de bombeiros ao fundo da rua, que virou noutra direção, o que nos deixou preocupados. Liguei para os bombeiros. "Por favor avise os senhores que é na rua X, está bem, é que eles foram para outro lado". Que sim senhor. Lá chegaram junto a nós dois bombeiros simpáticos e com muito boa vontade, e que devem ter achado que seria piece of cake arrancar o demoniozinho do seu reduto inexpugnável. Ah, ah, era o eras.
Bufante, lutador, teimoso que nem mil mulas velhas, o facto é que o bom do gato nos mantinha a todos em sentido, e cá por mim só esperava não acabar desfigurada por me meter em aventura alheia. Mas como alheia? Vizinho e seu gato em perigo, o problema é de todos. E como! Bem, os bombeiros concluíram que o bicho era danado, voltaram à carrinha e quando vejo enfiavam luvas grossas até aos cotovelos, e capacetes. Em todo o derredor, entretanto, o bairro vibrava com aquele aparato ,com as janelas de vários prédios cheias de gente a observar o cenário. Já deviam ser umas 7 ou 8 pessoas, eu incluída, atrás do mavioso miauzinho, que só abria a boca para escarrar ameaças. De um lado, uma vassoura acicatava o bichano para um lado, do outro, o bombeiro tentava, muito a medo (e justificadamente), atraí-lo. Concluiu-se que o caso era sério, os bombeiros voltaram à carrinha e trouxeram uma grande rede. O método, entre o estudado e o repentista, consistia em afugentar o gato de um lado para o outro, a ver se saía debaixo do carro sendo, num ápice, artisticamente tolhido pela dita rede. Num repente já estou eu a segurar na rede de um lado, e o bombeiro no outro. Mas qual gato! A mangar escandalosamente de nós todos, ainda nos fez andar de carro em carro, e finalmente do outro lado da rua, já que se fartou da brincadeira e fugiu.
Teorias sensatas, preocupadas e exaustas desenhavam-se no ar da noite que entretanto se consumara: que o melhor era manter a luz do andar ligada e sairmos dali para não o stressarmos mais; que ele quando se visse sozinho teria uma epifania e veria que o seu lugar era em casa, etc.. Não sei quantas horas passei nisto. Só sei que entretanto, com várias pessoas envolvidas, horas transcorridas, o insucesso dominante e o meu próprio cansaço, me despedi, desejando boa sorte. Antes de chegar a casa ainda um cãozinho mínimo se vira para mim a ladrar, ao que eu digo ao dono "Ai, por favor, hoje não, olhe que estou à horas atrás de um gato", e logo ali se delineia mais uma conversa, alargada depois a uma outra vizinha (e eu não conhecia ninguém e esta é uma das maravilhas do meu bairro), sobre a rocambolesca aventura.
Espreitei pela janela bastante tempo depois, e a carrinha dos bombeiros ainda lá estava à esquina. Incansáveis, sensíveis, e ali a colaborar para ajudar um gatinho teimoso a voltar para os seus donos. Espero que tenha tudo acabado em bem. Se voltar a ver o vizinho, pergunto e conto.